Os problemáticos
Não acompanhei a distribuição do pessoal pelos diferentes grupos, mas ao que várias pessoas me confidenciaram, os alferes dos três primeiros grupos escolheram os que julgavam melhores, deixando para o quarto grupo, sem oficial, o “refugo”.
Lembro-me da forma piedosa com que alguns elementos da área dos serviços me alertaram para essa contingência, prevendo que a minha comissão seria um inferno antes mesmo do inimigo se mostrar.
Devo confessar que nunca me apercebi de diferenças notórias entre o meu pessoal e o outro. É certo que havia um ou outro “bicho esquisito”, mas isso não era exclusivo do quarto grupo, e de sargentos a praças, o tom dominante foi sempre o da disciplina e do respeito.
Num balanço final, o que encontrei, de facto problemático?
Quatro casos apenas merecem referência:
1 – O básico
O Veigas, um caso especial de dócil inaptidão, cedo desviado para áreas onde não representava risco, com conto noutro lado.
2 – O porco
Um soldado tímido e muito discreto, mas que nunca na vida devia ter ouvido falar em higiene. Nas primeiras operações foi fácil notar a sua exclusão:
Cada militar levava para o mato um pano de tenda, e lá, juntavam-se aos pares, e com os dois panos e uns galhos improvisavam uma tenda. Ele ficava sempre sozinho – um pau curto de cada lado, e o pano fazia as duas abas, numa tendinha rasteira.
Perguntei a um furriel porque é que ele não se juntava a ninguém, e fui informado que eram os colegas que fugiam dele – comia dentro da tenda, e os restos e migalhas atraíam todo o género de bicharada, que não o incomodavam a ele, mas ninguém se dispunha a partilhar. Foi um árduo trabalho, mas conseguiu-se a evolução que permitiu a integração.
3 – O maluco
O caso mais complexo foi, sem dúvida, o, digamos, BdC.
Tratava-se de um refractário, um jovem que emigrara para fugir à guerra, mas fora apanhado e incorporado mais tarde. Era um pouco mais velho que os outros, não tanto como eu, e dava claros sinais de perturbação mental.
O pessoal dividia-se, uns considerando-o maluco outros um hábil simulador, tentando de outra forma o mesmo objectivo de sempre.
Lembro-me da forma piedosa com que alguns elementos da área dos serviços me alertaram para essa contingência, prevendo que a minha comissão seria um inferno antes mesmo do inimigo se mostrar.
Devo confessar que nunca me apercebi de diferenças notórias entre o meu pessoal e o outro. É certo que havia um ou outro “bicho esquisito”, mas isso não era exclusivo do quarto grupo, e de sargentos a praças, o tom dominante foi sempre o da disciplina e do respeito.
Num balanço final, o que encontrei, de facto problemático?
Quatro casos apenas merecem referência:
1 – O básico
O Veigas, um caso especial de dócil inaptidão, cedo desviado para áreas onde não representava risco, com conto noutro lado.
2 – O porco
Um soldado tímido e muito discreto, mas que nunca na vida devia ter ouvido falar em higiene. Nas primeiras operações foi fácil notar a sua exclusão:
Cada militar levava para o mato um pano de tenda, e lá, juntavam-se aos pares, e com os dois panos e uns galhos improvisavam uma tenda. Ele ficava sempre sozinho – um pau curto de cada lado, e o pano fazia as duas abas, numa tendinha rasteira.
Perguntei a um furriel porque é que ele não se juntava a ninguém, e fui informado que eram os colegas que fugiam dele – comia dentro da tenda, e os restos e migalhas atraíam todo o género de bicharada, que não o incomodavam a ele, mas ninguém se dispunha a partilhar. Foi um árduo trabalho, mas conseguiu-se a evolução que permitiu a integração.
3 – O maluco
O caso mais complexo foi, sem dúvida, o, digamos, BdC.
Tratava-se de um refractário, um jovem que emigrara para fugir à guerra, mas fora apanhado e incorporado mais tarde. Era um pouco mais velho que os outros, não tanto como eu, e dava claros sinais de perturbação mental.
O pessoal dividia-se, uns considerando-o maluco outros um hábil simulador, tentando de outra forma o mesmo objectivo de sempre.
Não consegui construir uma opinião segura – nos seus momentos “bons” era um rapaz inteligente, com um nível de instrução e conhecimentos gerais claramente acima da média, e de fácil convívio, mas, sem razões aparentes, entrava frequentemente em crise. Nesses momentos, quando aparentemente “saltava um fusível” o descontrolo era absoluto.
Tudo muito discutível e discutido até ao dia em que um furriel me veio pedir que interviesse, porque o BdC estava no refeitório num momento não, e ostentando uma faca. Segui-o imediatamente, e encontrei o soldado já em frente ao edifício de comando, de faca ainda na mão, e o ar desvairado dos maus momentos. |
Enfrentei-o sem palavras, e tentei adivinhar a melhor forma de agir. Olhou-me olhos nos olhos, tenso, estático, revirando os olhos, mas sem sinais de agressividade.
Mantive o olhar firme nos olhos, sem gestos nem palavras, e também ele prolongou a cena até ao limite, rolando lentamente a faca na mão, claramente na expectativa.
Em nossa volta adensava-se um círculo curioso, numa enorme tensão e expectativa, todos à distância, talvez percebendo a inoportunidade de qualquer tentativa de quebrar a relação que tínhamos estabelecido.
Foi ele que não aguentou o impasse, e num gesto brusco atirou a faca ao chão, junto aos meus pés.
Imediatamente o capitão, que saíra do comando e era um dos muitos observadores em tensão, correu para ele, e com um empurrão violento atirou-o contra um jeep.
O BdC, profundamente desorientado, tentou levantar-se, mas foi facilmente dominado e preso.
Que me lembre, foi o único “cliente” da prisão sob o depósito da água, até ao MVL seguinte, no qual foi evacuado sob prisão para Luanda.
Nunca mais ouvimos falar dele…
Bem… eu ouvi!
Muitos anos depois, estava a trabalhar quando recebi uma chamada a perguntar se conhecia um tal BdC. Respondi que não, mas, quando adiantaram que era um antigo militar em Santa Isabel, a apagada memória reavivou-se, e o nome voltou a ser colado à cena que, obviamente, nunca esquecera.
Explicaram-me então que havia um processo em que ele alegava ter ficado mentalmente perturbado como consequência da guerra, habilitando-se a uma pensão.
Disse o que a consciência me ditava: que a perturbação mental era evidente quando o conheci, meses depois de ele ter chegado a Angola, mas não podia de forma nenhuma atestar que ela fora adquirida em Angola ou já para lá levada. E foi tudo.
4 – O “esquentado”
O caso mais triste foi o de um cozinheiro, que de tanto “cozinhar na sanzala”, apanhou uma blenorragia.
Problema comum em África, com tratamento e cura, havendo o devido cuidado e higiene.
Não foi o caso, e a infecção tornou-se crónica e do domínio público, levando o pessoal a exigir o seu afastamento da cozinha.
A primeira medida foi a sua transferência para um grupo de combate (o do “refugo”, claro, ou seja… o meu) mas o desvario continuou, levando o capitão a decretar o seu degredo para a Vamba, onde as únicas fêmeas conhecidas eram de mosquito e de rato, sem grandes hipóteses de atrair o alucinado.
Ao fim de algumas semanas de desterro, ele veio ter comigo choroso, que não tinha feito mal nenhum a ninguém, já não tinha roupa, e se eu o deixasse ir à sede da companhia no próximo reabastecimento prometia portar-se bem, e sem me comprometer.
Era uma situação difícil – o seu afastamento era uma medida profiláctica, tentando que a sua infecção não viesse a ser passada a mais ninguém, mas, aparte a doença, nada havia no plano disciplinar a justificar dureza na punição.
Entre avisos, ameaças e promessas condescendi, e abri a excepção.
Por razões que não recordo tinha de ficar na unidade, não regressando com o reabastecimento. À hora estipulada para a saída, as viaturas alinhavam-se a trabalhar, mas… não partiam.
Desci a saber o que se passava, mas nem precisei de explicações, pois logo o cavalheiro surgiu esbaforido do lado da sanzala, a pedir-me muitas desculpas.
Fechei o punho e…
Lembrei-me que o idiota era casado e pai de dois filhos e a imagem das crianças travou-me, nesse dia percebendo que muito dificilmente darei um murro a alguém em toda a vida.
Não houve mais excepções, não imagino o que terá sido a sua reinserção na família, mas a cara que não levou o merecido soco nunca mais se me apagará da memória.
(Narrativa de Avelino Lopes)
Mantive o olhar firme nos olhos, sem gestos nem palavras, e também ele prolongou a cena até ao limite, rolando lentamente a faca na mão, claramente na expectativa.
Em nossa volta adensava-se um círculo curioso, numa enorme tensão e expectativa, todos à distância, talvez percebendo a inoportunidade de qualquer tentativa de quebrar a relação que tínhamos estabelecido.
Foi ele que não aguentou o impasse, e num gesto brusco atirou a faca ao chão, junto aos meus pés.
Imediatamente o capitão, que saíra do comando e era um dos muitos observadores em tensão, correu para ele, e com um empurrão violento atirou-o contra um jeep.
O BdC, profundamente desorientado, tentou levantar-se, mas foi facilmente dominado e preso.
Que me lembre, foi o único “cliente” da prisão sob o depósito da água, até ao MVL seguinte, no qual foi evacuado sob prisão para Luanda.
Nunca mais ouvimos falar dele…
Bem… eu ouvi!
Muitos anos depois, estava a trabalhar quando recebi uma chamada a perguntar se conhecia um tal BdC. Respondi que não, mas, quando adiantaram que era um antigo militar em Santa Isabel, a apagada memória reavivou-se, e o nome voltou a ser colado à cena que, obviamente, nunca esquecera.
Explicaram-me então que havia um processo em que ele alegava ter ficado mentalmente perturbado como consequência da guerra, habilitando-se a uma pensão.
Disse o que a consciência me ditava: que a perturbação mental era evidente quando o conheci, meses depois de ele ter chegado a Angola, mas não podia de forma nenhuma atestar que ela fora adquirida em Angola ou já para lá levada. E foi tudo.
4 – O “esquentado”
O caso mais triste foi o de um cozinheiro, que de tanto “cozinhar na sanzala”, apanhou uma blenorragia.
Problema comum em África, com tratamento e cura, havendo o devido cuidado e higiene.
Não foi o caso, e a infecção tornou-se crónica e do domínio público, levando o pessoal a exigir o seu afastamento da cozinha.
A primeira medida foi a sua transferência para um grupo de combate (o do “refugo”, claro, ou seja… o meu) mas o desvario continuou, levando o capitão a decretar o seu degredo para a Vamba, onde as únicas fêmeas conhecidas eram de mosquito e de rato, sem grandes hipóteses de atrair o alucinado.
Ao fim de algumas semanas de desterro, ele veio ter comigo choroso, que não tinha feito mal nenhum a ninguém, já não tinha roupa, e se eu o deixasse ir à sede da companhia no próximo reabastecimento prometia portar-se bem, e sem me comprometer.
Era uma situação difícil – o seu afastamento era uma medida profiláctica, tentando que a sua infecção não viesse a ser passada a mais ninguém, mas, aparte a doença, nada havia no plano disciplinar a justificar dureza na punição.
Entre avisos, ameaças e promessas condescendi, e abri a excepção.
Por razões que não recordo tinha de ficar na unidade, não regressando com o reabastecimento. À hora estipulada para a saída, as viaturas alinhavam-se a trabalhar, mas… não partiam.
Desci a saber o que se passava, mas nem precisei de explicações, pois logo o cavalheiro surgiu esbaforido do lado da sanzala, a pedir-me muitas desculpas.
Fechei o punho e…
Lembrei-me que o idiota era casado e pai de dois filhos e a imagem das crianças travou-me, nesse dia percebendo que muito dificilmente darei um murro a alguém em toda a vida.
Não houve mais excepções, não imagino o que terá sido a sua reinserção na família, mas a cara que não levou o merecido soco nunca mais se me apagará da memória.
(Narrativa de Avelino Lopes)