Reconhecimento ofensivo
"Reconhecimento ofensivo das nascentes do Cabala".
Eram estas as instruções que frequentemente recebíamos na Vamba, para operações na direcção da central do Mungage.
A central do Mungage era um aquartelamento de guerrilheiros, a pouco mais de 2 Km da Vamba, e onde a Pide informava que estavam 5000 pessoas, com 150 armas.
"Reconhecimento ofensivo" era o eufemismo militar para me dizer:
Versão oficial:
- Pegue nos seus 20 homens, siga para as nascentes do Cabala e se virem alguém, ataquem.
Versão prudente:
- Vá com cuidado com os seus homens até à nascente do Cabala, e, quando forem atacados tente respoder e... escapar.
Avaliemos o cenário:
Umas centenas de guerrilheiros instalados no mato, apercebem-se que um pequeno grupo de militares se aproxima. Organizam a sua defesa, emboscando o percurso, que conhecem e dominam, e mesmo que mobilizem apenas uma parte dos recursos posso contar com 30 a 40 armas cuidadosamente instaladas e escondidas à nossa espera.
Para fazer frente a isso o que é que nós temos? Ao todo:
1 Alferes
3 Furriéis
2 Cabos
1 Enfermeiro
1 Operador de transmissões
9 Soldados continentais
6 Soldados africanos
Distingo os soldados continentais dos africanos, não por uma questão de racismo, mas porque, militarmente, estamos a falar de pessoas substancialmente diferentes: em primeiro lugar, a preparação dos africanos era extremamente deficiente, em segundo lugar, a sua predisposição para a guerra nunca me convenceu.
Mas mesmo entre os europeus, as diferenças eram enormes. Lembro-me, por exemplo, do Veigas.
O Veigas era um caso perdido. Mentalmente limitado, só fazia disparates, alguns bem perigosos. A sua presença no grupo era uma ameaça para nós, e nunca para o inimigo.
Dois exemplos:
No fim de cada saída, ao regressar ao quartel, um furriel alinhava o pessoal, mandava tirar o carregador, puxar a culatra atrás para sair a munição da câmara, e depois, por segurança, dar uma gatilhada com a espingarda ao alto. Só depois o carregador era reposto, com a patlha na posição de segurança, e sem introduzir munição na câmara. Com todos estes cuidados, era impossível haver tiros acidentais. Bem... era... até entrar o Veigas - frequentemente, na hora da gatilhada saía tiro para o ar, porque o Veigas tinha trocado tudo e mantinha a arma carregada.
Mais perigoso foi o que aconteceu em Santa Isabel. Quando as munições chegavam ao fim do prazo de validade, eram substituídas, e as velhas destruídas através da sua utilização para treino de tiro. Lá fomos disparar, e o cuidado era treinar tiro de rajada. Para os não entendidos esclareça-se que as armas permitiam fazer tiro a tiro ou em rajada, podendo descarregar todas as balas de seguida. O problema do tiro de rajada é que gera desequilíbrios, pelo que apenas os primeiro dois ou três tiros seguem na direcção alvo, desviando-se progressivamente, razão por que a técnica correcta era disparar rajadas muito curtas, e foi isso que treinámos. Bem... mas havia o Veigas.
Os furriéis não queriam que o deixasse disparar mas... ainda tentei. Coloquei-me ao lado dele, recomendei-lhe que se equilibrasse bem, e repeti alto, baixo e médio 400000 vezes "rajadas curtas". Perguntei-lhe outras 400000 se tinha percebido bem, e ele... claro que sim.
Fogo!
Vinte balas saíram de seguida, enquanto o Veigas se desequilibrava, punha um pé atrás, e deixava a espingarda descrever um arco que... parou à frente da minha barriga. Se o carregador tivesse mais duas ou três munições, eu teria ficado com um ou mais buracos no abdómen.
"Pôçara!"
Foi tudo o que o Veigas disse, e ficou com aquele ar tímido e envergonhado de quem acha que não fez bem o que devia.
Felizmente que o capitão percebeu que o Veigas era mais perigoso para o seu pessoal que os "turras" todos juntos, e lhe retirou a arma das mãos promovendo-o a jardineiro.
Mas havia mais:
Por exemplo, o "Tatão" um simpático e bonacheirão angolano, que um dia tentei motivar chamando-o para meu guarda-costas, em substituição do Viana, temporariamente ausente, e que ficou tão vaidoso que passou a apresentar-se como o CCS (abreviatura para Companhia de Comando e Serviço). Perto do final da comissão, o Sebastião confessou-me que nunca tinha posto a mão numa granada, pelo que, quando chegou a hora de as usar para instrução o mandei lançar uma.
Usávamos um buraco ao lado da estrada, donde tinha sido retirado barro para as palhotas, e para onde podíamos lançar as granadas sem riscos para ninguém.
- Agarra a granada com a mão direita, vá... agora agarra a cavilha com a mão esquerda... isso... a patilha bem presa na palma da mão... não deixes escapar... vá... agora puxa a cavilha...
O Sebastião esticava o braço, pondo a granada tão longe da cara quanto o braço permitia, olhava de esguelha, como se ela exalasse fumos ou mau-cheiro, e tremia... tremia...
- Atira... agora.
Num esgar de pânico o Sebastião lançou a granada, com tanta força que passou por cima do buraco, e ficou do lado de lá a... olhar para nós!
Saltámos todos que nem molas, a enfiarmo-nos na valeta da estrada, e ninguém se aleijou.
Desculpem o longo aparte, mas era com este grupo que eu devia fazer o tal "reconhecimento ofensivo". Descontando os homens que não davam garantias, e as armas que encravavam, eu podia contar, se tudo corresse bem, com 11 armas, incluindo a minha. Era por isso que o meu entendimento da ordem de reconhecimento ofensivo não coincidia com a versão oficial, nem sequer com a prudente. O meu entendimento era:
- Vai lá com os teus homens onde te mandaram, e trata de os trazer todos.
Começávamos a avançar no mato, tropeçando, escorregando, caindo uns em cima dos outros, segurando-nos a lianas que, umas vezes nos aguentavam outras cediam e vinham connosco de esgalgalhão, avançando dez metros para a seguir recuar outros tantos aos trambolhões, até que, a certa altura ouvíamos tiros de aviso.
Tínhamos sido detectados e o "comité de recepção" estava a ser convocado.
Abandonávamos a linha de progressão, desviávamo-nos para um lado, e tentávamos aproximar-nos doutra direcção, de surpresa. Sem hipótese - mais tiros indicavam que o movimento tinha sido percebido, e a recepção estava a ser recolocada.
Ao fim de várias tentativas, confirmando a impossibilidade da surpresa que compensasse as nossas inferioridades, numérica, de armamento e de domínio do terreno, regressávamos à base, de coração nas mãos e mudando frequentemente de percurso, pois sabíamos que era nesses regressos que as emboscadas eram frequentes.
Missão cumprida, todos de volta, mas o comando espumava de raiva com a nossa actividade. Naturalmente que o comando de batalhão nunca teve o atrevimento de nos ordenar que forçássemos demasiado, e arriscássemos ter baixas, mas, no fundo, era disso que precisava. Baixas, ou armas capturadas, eram os indicadores estatísticos relevantes em Luanda, e batalhão que não permitisse colocar marcadores nos mapas do quartel-general era quase como se não existisse. À falta de armas capturadas, a estrutura profissional da guerra precisava de sangue...
E teve-o, felizmente para nós, com outra companhia - a de Zalala.
Cansado de "reconhecimentos ofensivos" sem resultados, o comandante de batalhão decidiu comandar pessoalmente um deles.
Lá saíram de Zalala, a dois grupos, lá ouviram a serenata de tiros de aviso, mas o comandante mandou continuar. O próximo tiro não foi de aviso, e correspondeu ao primeiro morto em combate do batalhão, pondo fim à operação.
Mas o comandante era valente, percebeu a desmoralização que o incidente poderia instalar no pessoal, e na semana seguinte repetiu a acção. Tudo se repetiu também, com uma pequena diferença - o tiro que fez o segundo e último morto em combate do batalhão atravessou primeiro a garganta do enfermeiro, que sobreviveu.
O Batalhão 3879 lá conseguiu, assim, colocar dois pins no mapa do Quartel-General de Luanda, mas acredito que, ao mesmo tempo, o comando ficou com outra ideia e outro respeito pela forma como conduzíamos a nossa actividade.
Narrativa de Avelino Lopes
Eram estas as instruções que frequentemente recebíamos na Vamba, para operações na direcção da central do Mungage.
A central do Mungage era um aquartelamento de guerrilheiros, a pouco mais de 2 Km da Vamba, e onde a Pide informava que estavam 5000 pessoas, com 150 armas.
"Reconhecimento ofensivo" era o eufemismo militar para me dizer:
Versão oficial:
- Pegue nos seus 20 homens, siga para as nascentes do Cabala e se virem alguém, ataquem.
Versão prudente:
- Vá com cuidado com os seus homens até à nascente do Cabala, e, quando forem atacados tente respoder e... escapar.
Avaliemos o cenário:
Umas centenas de guerrilheiros instalados no mato, apercebem-se que um pequeno grupo de militares se aproxima. Organizam a sua defesa, emboscando o percurso, que conhecem e dominam, e mesmo que mobilizem apenas uma parte dos recursos posso contar com 30 a 40 armas cuidadosamente instaladas e escondidas à nossa espera.
Para fazer frente a isso o que é que nós temos? Ao todo:
1 Alferes
3 Furriéis
2 Cabos
1 Enfermeiro
1 Operador de transmissões
9 Soldados continentais
6 Soldados africanos
Distingo os soldados continentais dos africanos, não por uma questão de racismo, mas porque, militarmente, estamos a falar de pessoas substancialmente diferentes: em primeiro lugar, a preparação dos africanos era extremamente deficiente, em segundo lugar, a sua predisposição para a guerra nunca me convenceu.
Mas mesmo entre os europeus, as diferenças eram enormes. Lembro-me, por exemplo, do Veigas.
O Veigas era um caso perdido. Mentalmente limitado, só fazia disparates, alguns bem perigosos. A sua presença no grupo era uma ameaça para nós, e nunca para o inimigo.
Dois exemplos:
No fim de cada saída, ao regressar ao quartel, um furriel alinhava o pessoal, mandava tirar o carregador, puxar a culatra atrás para sair a munição da câmara, e depois, por segurança, dar uma gatilhada com a espingarda ao alto. Só depois o carregador era reposto, com a patlha na posição de segurança, e sem introduzir munição na câmara. Com todos estes cuidados, era impossível haver tiros acidentais. Bem... era... até entrar o Veigas - frequentemente, na hora da gatilhada saía tiro para o ar, porque o Veigas tinha trocado tudo e mantinha a arma carregada.
Mais perigoso foi o que aconteceu em Santa Isabel. Quando as munições chegavam ao fim do prazo de validade, eram substituídas, e as velhas destruídas através da sua utilização para treino de tiro. Lá fomos disparar, e o cuidado era treinar tiro de rajada. Para os não entendidos esclareça-se que as armas permitiam fazer tiro a tiro ou em rajada, podendo descarregar todas as balas de seguida. O problema do tiro de rajada é que gera desequilíbrios, pelo que apenas os primeiro dois ou três tiros seguem na direcção alvo, desviando-se progressivamente, razão por que a técnica correcta era disparar rajadas muito curtas, e foi isso que treinámos. Bem... mas havia o Veigas.
Os furriéis não queriam que o deixasse disparar mas... ainda tentei. Coloquei-me ao lado dele, recomendei-lhe que se equilibrasse bem, e repeti alto, baixo e médio 400000 vezes "rajadas curtas". Perguntei-lhe outras 400000 se tinha percebido bem, e ele... claro que sim.
Fogo!
Vinte balas saíram de seguida, enquanto o Veigas se desequilibrava, punha um pé atrás, e deixava a espingarda descrever um arco que... parou à frente da minha barriga. Se o carregador tivesse mais duas ou três munições, eu teria ficado com um ou mais buracos no abdómen.
"Pôçara!"
Foi tudo o que o Veigas disse, e ficou com aquele ar tímido e envergonhado de quem acha que não fez bem o que devia.
Felizmente que o capitão percebeu que o Veigas era mais perigoso para o seu pessoal que os "turras" todos juntos, e lhe retirou a arma das mãos promovendo-o a jardineiro.
Mas havia mais:
Por exemplo, o "Tatão" um simpático e bonacheirão angolano, que um dia tentei motivar chamando-o para meu guarda-costas, em substituição do Viana, temporariamente ausente, e que ficou tão vaidoso que passou a apresentar-se como o CCS (abreviatura para Companhia de Comando e Serviço). Perto do final da comissão, o Sebastião confessou-me que nunca tinha posto a mão numa granada, pelo que, quando chegou a hora de as usar para instrução o mandei lançar uma.
Usávamos um buraco ao lado da estrada, donde tinha sido retirado barro para as palhotas, e para onde podíamos lançar as granadas sem riscos para ninguém.
- Agarra a granada com a mão direita, vá... agora agarra a cavilha com a mão esquerda... isso... a patilha bem presa na palma da mão... não deixes escapar... vá... agora puxa a cavilha...
O Sebastião esticava o braço, pondo a granada tão longe da cara quanto o braço permitia, olhava de esguelha, como se ela exalasse fumos ou mau-cheiro, e tremia... tremia...
- Atira... agora.
Num esgar de pânico o Sebastião lançou a granada, com tanta força que passou por cima do buraco, e ficou do lado de lá a... olhar para nós!
Saltámos todos que nem molas, a enfiarmo-nos na valeta da estrada, e ninguém se aleijou.
Desculpem o longo aparte, mas era com este grupo que eu devia fazer o tal "reconhecimento ofensivo". Descontando os homens que não davam garantias, e as armas que encravavam, eu podia contar, se tudo corresse bem, com 11 armas, incluindo a minha. Era por isso que o meu entendimento da ordem de reconhecimento ofensivo não coincidia com a versão oficial, nem sequer com a prudente. O meu entendimento era:
- Vai lá com os teus homens onde te mandaram, e trata de os trazer todos.
Começávamos a avançar no mato, tropeçando, escorregando, caindo uns em cima dos outros, segurando-nos a lianas que, umas vezes nos aguentavam outras cediam e vinham connosco de esgalgalhão, avançando dez metros para a seguir recuar outros tantos aos trambolhões, até que, a certa altura ouvíamos tiros de aviso.
Tínhamos sido detectados e o "comité de recepção" estava a ser convocado.
Abandonávamos a linha de progressão, desviávamo-nos para um lado, e tentávamos aproximar-nos doutra direcção, de surpresa. Sem hipótese - mais tiros indicavam que o movimento tinha sido percebido, e a recepção estava a ser recolocada.
Ao fim de várias tentativas, confirmando a impossibilidade da surpresa que compensasse as nossas inferioridades, numérica, de armamento e de domínio do terreno, regressávamos à base, de coração nas mãos e mudando frequentemente de percurso, pois sabíamos que era nesses regressos que as emboscadas eram frequentes.
Missão cumprida, todos de volta, mas o comando espumava de raiva com a nossa actividade. Naturalmente que o comando de batalhão nunca teve o atrevimento de nos ordenar que forçássemos demasiado, e arriscássemos ter baixas, mas, no fundo, era disso que precisava. Baixas, ou armas capturadas, eram os indicadores estatísticos relevantes em Luanda, e batalhão que não permitisse colocar marcadores nos mapas do quartel-general era quase como se não existisse. À falta de armas capturadas, a estrutura profissional da guerra precisava de sangue...
E teve-o, felizmente para nós, com outra companhia - a de Zalala.
Cansado de "reconhecimentos ofensivos" sem resultados, o comandante de batalhão decidiu comandar pessoalmente um deles.
Lá saíram de Zalala, a dois grupos, lá ouviram a serenata de tiros de aviso, mas o comandante mandou continuar. O próximo tiro não foi de aviso, e correspondeu ao primeiro morto em combate do batalhão, pondo fim à operação.
Mas o comandante era valente, percebeu a desmoralização que o incidente poderia instalar no pessoal, e na semana seguinte repetiu a acção. Tudo se repetiu também, com uma pequena diferença - o tiro que fez o segundo e último morto em combate do batalhão atravessou primeiro a garganta do enfermeiro, que sobreviveu.
O Batalhão 3879 lá conseguiu, assim, colocar dois pins no mapa do Quartel-General de Luanda, mas acredito que, ao mesmo tempo, o comando ficou com outra ideia e outro respeito pela forma como conduzíamos a nossa actividade.
Narrativa de Avelino Lopes