O Choco
Não me lembro de que grupo era o "Choco", mas recordo bem o caso especial que ele era. Madeirense, viveu toda a vida isolado, de tal forma que a primeira vez que viu o mar foi no dia em que viajou para o Funchal, para "assentar praça".
A primeira cama que teve na vida foi a que a tropa lhe proporcionou, pelo que não admira que, quando voltava à caserna e encontrava um cão deitado na cama dormisse no chão para não o incomodar.
O problema maior do Choco era... tresandar. Sempre que tomava banho adoecia, e por isso o banho do Choco tinha que sair em ordem de serviço, e ser aplicado compulsivamente por terceiros.
Certa vez, calhou ao grupo do Choco fazer o MVL.
O Movimento de Viaturas Logísticas, na gíria conhecido como MVL era a única forma de trânsito civil nas zonas de guerra, onde a circulação estava condicionada. Na madrugada de cada Sábado, formava-se em Luanda uma coluna de viaturas civis, que, devidamente enquadradas por militares, subiam para o norte, zona de guerrilha. No Uíge a coluna chegava a Carmona ainda no Sábado, mas no Zaire pernoitava em Ambrizete, passando em Quiximba no Domingo, a caminho de São Salvador do Zaire. Á frente seguia um rebenta-minas escoltado por um grupo de combate, depois as viaturas civis, e no fim, outro grupo de combate fechava a coluna.
A diferença de velocidade entre veículos ligeiros e camiões carregados levava ao alongamento da fila, que se ia estendendo por vários quilómetros de extensão, até que, na povoação ou quartel seguinte, a frente da coluna parava, e aguardava a junção de todos, só voltando a partir depois de chegado o grupo da retaguarda.
Lentamente, a lagarta de veículos lá se ia estendendo e encolhendo de quartel em quartel, até chegar, pela noite, às cidades de Carmona ou Santo António do Zaire, donde seguiam ainda colunas para as povoações fronteiriças de Maquela do Zombo ou Noqui.
Na quarta feira novo MVL assegurava o regresso a Luanda.
Embora só com dois deslocamentos por semana era um período duro, com um mês longe do quartel, embora por lá passando duas vezes na semana, dureza essa que o pessoal amenizava com uma breve confraternização com os amigos que se iam fazendo nos quartéis onde se passava.
A primeira cama que teve na vida foi a que a tropa lhe proporcionou, pelo que não admira que, quando voltava à caserna e encontrava um cão deitado na cama dormisse no chão para não o incomodar.
O problema maior do Choco era... tresandar. Sempre que tomava banho adoecia, e por isso o banho do Choco tinha que sair em ordem de serviço, e ser aplicado compulsivamente por terceiros.
Certa vez, calhou ao grupo do Choco fazer o MVL.
O Movimento de Viaturas Logísticas, na gíria conhecido como MVL era a única forma de trânsito civil nas zonas de guerra, onde a circulação estava condicionada. Na madrugada de cada Sábado, formava-se em Luanda uma coluna de viaturas civis, que, devidamente enquadradas por militares, subiam para o norte, zona de guerrilha. No Uíge a coluna chegava a Carmona ainda no Sábado, mas no Zaire pernoitava em Ambrizete, passando em Quiximba no Domingo, a caminho de São Salvador do Zaire. Á frente seguia um rebenta-minas escoltado por um grupo de combate, depois as viaturas civis, e no fim, outro grupo de combate fechava a coluna.
A diferença de velocidade entre veículos ligeiros e camiões carregados levava ao alongamento da fila, que se ia estendendo por vários quilómetros de extensão, até que, na povoação ou quartel seguinte, a frente da coluna parava, e aguardava a junção de todos, só voltando a partir depois de chegado o grupo da retaguarda.
Lentamente, a lagarta de veículos lá se ia estendendo e encolhendo de quartel em quartel, até chegar, pela noite, às cidades de Carmona ou Santo António do Zaire, donde seguiam ainda colunas para as povoações fronteiriças de Maquela do Zombo ou Noqui.
Na quarta feira novo MVL assegurava o regresso a Luanda.
Embora só com dois deslocamentos por semana era um período duro, com um mês longe do quartel, embora por lá passando duas vezes na semana, dureza essa que o pessoal amenizava com uma breve confraternização com os amigos que se iam fazendo nos quartéis onde se passava.
Alguns desenvolviam hábitos e rotinas estranhas.
Por exemplo, o alferes Corte-Real, do Quiende, decidiu que só cumprimentaria os camaradas das várias companhias onde parava depois de beber três cervejas, "para limpar o pó da garganta".
Quando era ele a estar de serviço ao MVL, mal se avistava o pó da frente da coluna, logo o Ferrer ou o Maria preparavam três cervejas na messe, que o tempo não era muito. E a rotina cumpria-se sem falhas - três cervejas varriam o pó, seguiam-se os abraços e cumprimentos da ordem, e depois, enquanto a coluna se juntava, aproveitava para beber umas cervejas com os amigos.
Mas um dia houve problemas:
No MVL vinha um grupo de TEs.
Os TE eram mercenários angolanos. Antigos guerrilheiros, tinham-se vendido à PIDE, e actuavam agora sob as suas ordens, mas a tropa nunca deixou de os olhar com suspeição, e as relações eram frias ou mesmo nulas.
Por exemplo, o alferes Corte-Real, do Quiende, decidiu que só cumprimentaria os camaradas das várias companhias onde parava depois de beber três cervejas, "para limpar o pó da garganta".
Quando era ele a estar de serviço ao MVL, mal se avistava o pó da frente da coluna, logo o Ferrer ou o Maria preparavam três cervejas na messe, que o tempo não era muito. E a rotina cumpria-se sem falhas - três cervejas varriam o pó, seguiam-se os abraços e cumprimentos da ordem, e depois, enquanto a coluna se juntava, aproveitava para beber umas cervejas com os amigos.
Mas um dia houve problemas:
No MVL vinha um grupo de TEs.
Os TE eram mercenários angolanos. Antigos guerrilheiros, tinham-se vendido à PIDE, e actuavam agora sob as suas ordens, mas a tropa nunca deixou de os olhar com suspeição, e as relações eram frias ou mesmo nulas.
Oficialmente eles eram considerados muito eficientes, na medida em que conseguiam aquilo que era o grande objectivo militar - capturar armas. Mas a tropa estranhava o frequente e insólito tiroteio em que se envolviam, sempre sem baixas, apesar da captura de armas. No fim de cada operação entregavam uma ou duas armas "capturadas" e davam baixa de milhares de munições "gastas no combate". Sabendo-se que os guerrilheiros tinham abundância de armas e escassez de munições, a tropa acreditava que os TE, depois de uns tirinhos para o ar, para serem ouvidos no rádio, se limitavam a fazer um lucrativo e seguro negócio de trocar munições por armas.
Esta algo longa explicação serve para justificar porque é que, quando o MVL parou e os militares entraram no quartel, os TE ficaram à porta.
Tudo decorreu sem problemas até que um deles, sentindo um aperto, não esteve com meias medidas e desatou a urinar na porta de armas.
O soldado de guarda berrou-lhe, com a delicadeza própria da tropa e da situação, e os ânimos aqueceram. Discussão e ameaças, e o pessoal começou a deitar mão às armas.
Foi aí que surgiu uma dificuldade - com o à-vontade habitual, a maior parte dos militares da escolta tinha deixado as armas nas viaturas, frente à porta de armas, pelo que os TE, de espingarda em punho fizeram uma linha à saída do quartel, impedindo-os de chegar aos carros e às armas.
Esta algo longa explicação serve para justificar porque é que, quando o MVL parou e os militares entraram no quartel, os TE ficaram à porta.
Tudo decorreu sem problemas até que um deles, sentindo um aperto, não esteve com meias medidas e desatou a urinar na porta de armas.
O soldado de guarda berrou-lhe, com a delicadeza própria da tropa e da situação, e os ânimos aqueceram. Discussão e ameaças, e o pessoal começou a deitar mão às armas.
Foi aí que surgiu uma dificuldade - com o à-vontade habitual, a maior parte dos militares da escolta tinha deixado as armas nas viaturas, frente à porta de armas, pelo que os TE, de espingarda em punho fizeram uma linha à saída do quartel, impedindo-os de chegar aos carros e às armas.
Claro que havia muitos mais homens no quartel e bastava chamar alguns deles para que os TE decidissem ter juízo, o problema era consegui-lo antes que alguém mais nervoso desse o primeiro tiro.
Um ligeiro impasse, enquanto pesava as opções (chamar mais gente ou tentar controlar a situação com o pessoal presente) quando por detrás dos TE surge a solução: Do alto da Berliet rebenta-minas, agarrado à metralhadora pesada, o Choco perguntava na sua voz pastosa: - Oh meu alferes, por que lado é que começo? Apanhados entre dois fogos (e que fogos!), os TE acabaram imediatamente com a insurreição. O Choco, o único que não tinha amigos, nem sede, nem necessidade de se limpar, nem nada, ficara na viatura e resolvera o assunto. Digam lá que a labreguice, às vezes, não pode ter as suas virtudes... Contado por Avelino Lopes |