Santa Isabel
Santa Isabel era, entre as muitas fazendas de café, uma das poucas que albergavam forças militares. Se a vetustez dalguns edifícios sugeria que a fazenda já tinha um passado, a disposição geral mostrava o trabalho de adaptação, conciliando as exigências das actividades agrícolas e militares.
Os edifícios da fazenda localizavam-se num pequeno planalto, ao fim duma descida não muito longa mas acentuada. À entrada apercebia-se a distribuição do espaço, dominado por um largo terreiro lageado com meia dúzia de painéis destinados à secagem do café.
Os edifícios que rodeavam esses terraços e que em tempos deveriam ter constituído a totalidade da fazenda, albergavam agora, em conjunto com as máquinas de descaque e torrefacção do café e dos armazéns, a centena de homens que constituía a companhia de infantaria, com todos os respectivos serviços.
Os edifícios da fazenda localizavam-se num pequeno planalto, ao fim duma descida não muito longa mas acentuada. À entrada apercebia-se a distribuição do espaço, dominado por um largo terreiro lageado com meia dúzia de painéis destinados à secagem do café.
Os edifícios que rodeavam esses terraços e que em tempos deveriam ter constituído a totalidade da fazenda, albergavam agora, em conjunto com as máquinas de descaque e torrefacção do café e dos armazéns, a centena de homens que constituía a companhia de infantaria, com todos os respectivos serviços.
Logo à entrada, ainda numa posição mais elevada que o resto da área construída, havia à direita uma serração de madeira, onde um octogenário branco se reformara, tomando conta duma imensa gataria e, ao que dizia vivendo exclusivamente de mamões.
Mamões era o que não faltava, nas íngremes encostas do vale que nascia nessa dobra da entrada e se afundava a perder de vista, coberto de abacaxis. |
Continuando a descida entrava-se então no recinto da fazenda. Logo à esquerda, uma construção de dois pisos tinha no topo o tanque da água tratada para distribuição local, e no primeiro piso um posto de vigia. O rés-do-chão era uma divisão sem janelas e porta metálica, usado como prisão.
Em frente, imponente, aparecia um edifício acastelado cuja construção contrastava com todo o resto, e revelava ter sido construído expressamente para a adaptação à ocupação militar. Era nesse edifício que estava instalada a messe de oficiais, e o gerente da fazenda, ocupando todo o primeiro andar. Cozinha, instalações do pessoal ao serviço da messe e da gerência da fazenda preenchiam todo o res-do-chão, enquanto o segundo piso não era mais do que um pequeno bar, no centro do terraço com uma larga e agradável esplanada. |
Do lado oposto, atrás tos terraços da seca do café, ocupados nos longos períodos sem uso pelofutebol (e muito raramente ténis), o topo norte era fechado por uma contínua linha de edifícios baixos onde se sucediam armazéns, casas de máquinas e caserna militares.
À direita, continuando a suave descida, num outro edifício isolado e que fora, provavelmente a residência do gerente, funcionavam agora o comando da companhia, e os serviços, incluindo escritório, e enfermaria. As transmissões, por razões de segurança, estavam também no piso térreo do "castelo". |
A oriente, uma outra linha de edifícios fechava o conjunto, albergando a messe de sargentos e a cantina.
Por detrás dos edifícios do comando e oficiais, alargava-se um espaço circulável entre os edifícios e a encosta do pomar, que levava ao conjunto de construções onde se instalava o pessoal civil da fazenda, depois de atravessar o parque auto.
Era notório o divórcio entre a actividdde da fazenda e a população local. Aliás, a população local era mínima, a maior parte escondida na floresta, e as poucas e pequenas povoações controladas na região ficavam suficientemente longe para não ser viável a sua mobiliação para o trabalho.
A solução era, em Santa Isabel, a mesma da generalidade das fazendas - recorrer ao trabalho de nativos do sul, os bailundos, mais dóceis e cooperantes com os brancos.
Funcionava um sistema de contrato, por seis meses, ao abrigo duma muito controversa lei que impunha aos indígenas o trabalho obrigatório.
De seis em seis meses, alguns autocarros traziam nova remessa de trabalhadores compelidos, e reconduziam a casa os que terminavam contrato.
Não pudemos deixar de nos aperceber da frustração e raiva de muitos desses trabalhadores, quando, ao receber o dinheiro do contrato com que contavam poder comprar uma "ginga", um "cantante" e panos para as mulheres, se viam confrontados com os custos de alojamento e alimentação, incluindo as cervejas onde durante seis meses diluíam o desterro, para concluir que o saldo era uma miséria. Mas o sistema sobrevivia, e a fazenda também.
Quem lucrava com o negócio? Desde quando? até quando?
Por detrás dos edifícios do comando e oficiais, alargava-se um espaço circulável entre os edifícios e a encosta do pomar, que levava ao conjunto de construções onde se instalava o pessoal civil da fazenda, depois de atravessar o parque auto.
Era notório o divórcio entre a actividdde da fazenda e a população local. Aliás, a população local era mínima, a maior parte escondida na floresta, e as poucas e pequenas povoações controladas na região ficavam suficientemente longe para não ser viável a sua mobiliação para o trabalho.
A solução era, em Santa Isabel, a mesma da generalidade das fazendas - recorrer ao trabalho de nativos do sul, os bailundos, mais dóceis e cooperantes com os brancos.
Funcionava um sistema de contrato, por seis meses, ao abrigo duma muito controversa lei que impunha aos indígenas o trabalho obrigatório.
De seis em seis meses, alguns autocarros traziam nova remessa de trabalhadores compelidos, e reconduziam a casa os que terminavam contrato.
Não pudemos deixar de nos aperceber da frustração e raiva de muitos desses trabalhadores, quando, ao receber o dinheiro do contrato com que contavam poder comprar uma "ginga", um "cantante" e panos para as mulheres, se viam confrontados com os custos de alojamento e alimentação, incluindo as cervejas onde durante seis meses diluíam o desterro, para concluir que o saldo era uma miséria. Mas o sistema sobrevivia, e a fazenda também.
Quem lucrava com o negócio? Desde quando? até quando?
Nunca pudemos perceber quem eram os donos do negócio. A autoridade local era um homem na casa dos sessenta, que nunca exibiu ou referiu família, e que regularmente prestava contas a um outro que, periodicamente, vinha de Luanda, onde regressava no MVL seguinte.
Essas visitas eram o maior acontecimento na fazenda, pois o simpático senhor vinha sempre fornecido dum generoso stock de marisco, suficiente para abastecer a messe de oficiais e se prolongar um pouco pela de sargentos. Todos esses eventos eram ocasão para a abertura de algumas garrafas dum rosé das caves Aliança cuja frescura e qualidade se casavam na perfeição com as lagostas e camarão. Vinho e sotaque beirões, siginificaria que os patrões estariam por aí?
Coincidência ou não, as raras visitas do comando de batalhão coincidiam todas com a presença do dito senhor, e aconteciam a horas em que o jantar na companhia se tornava inevitável, mas o gerente era bom, e devia ter experiência suficiente para prever essas visitas, na preparação dos stocks.
Aliás, é curioso que na busca de informação histórica sobre a fazenda e que até agora nada produziu, a visita das lagostas é já mencionada por militares que nos antecederam no local, confirmando ser prática com muitos anos de uso.
Todas as histórias das fazendas encontradas se centram nos trágicos acontecimentos de 1961, mas, com a fuga dos colonos para o Quitexe, a maior parte dos textos relatam os acontecimentos no Quitexe, só individualizando fazendas em caso de excepcional violência. Não vimos Santa Isabel mencionada em nenhum desses relatos, nem, verdadeiramente podemos dizer que já existiria nessa data, mas a vetustez das construções ( e a ilógica de um novo empreendimento de tal dimensão e risco em zona de guerra) garantem-nos que sim
Essas visitas eram o maior acontecimento na fazenda, pois o simpático senhor vinha sempre fornecido dum generoso stock de marisco, suficiente para abastecer a messe de oficiais e se prolongar um pouco pela de sargentos. Todos esses eventos eram ocasão para a abertura de algumas garrafas dum rosé das caves Aliança cuja frescura e qualidade se casavam na perfeição com as lagostas e camarão. Vinho e sotaque beirões, siginificaria que os patrões estariam por aí?
Coincidência ou não, as raras visitas do comando de batalhão coincidiam todas com a presença do dito senhor, e aconteciam a horas em que o jantar na companhia se tornava inevitável, mas o gerente era bom, e devia ter experiência suficiente para prever essas visitas, na preparação dos stocks.
Aliás, é curioso que na busca de informação histórica sobre a fazenda e que até agora nada produziu, a visita das lagostas é já mencionada por militares que nos antecederam no local, confirmando ser prática com muitos anos de uso.
Todas as histórias das fazendas encontradas se centram nos trágicos acontecimentos de 1961, mas, com a fuga dos colonos para o Quitexe, a maior parte dos textos relatam os acontecimentos no Quitexe, só individualizando fazendas em caso de excepcional violência. Não vimos Santa Isabel mencionada em nenhum desses relatos, nem, verdadeiramente podemos dizer que já existiria nessa data, mas a vetustez das construções ( e a ilógica de um novo empreendimento de tal dimensão e risco em zona de guerra) garantem-nos que sim
Mais fácil será adivinhar o que veio a acontecer a Santa Isabel, depois da nossa saída. Após mais um ano, em que o marisco foi levado para os graduados da 3ª companhia de batalhão de infantaria 4211, o 25 de Abril fez regressar a tropa a Portugal, e os bailundos que o conseguiram às suas terras do sul.
Sem operação para gerir, e na antecâmara da guerra civil, o senhor Carvalho deve ter trocado a gerência por um lugar na fila dos retornados, abandonando a fazenda. Não há qualquer registo ou menção à fazenda Santa Isabel na Angola independente, pelo que, na impossibilidade de uma verificação local, o Google Earth é a única janela que se abre sobre o local, e de facto, o nome lá está, mas apontando para uma mancha de mato cerrado. É certo que as localizações do programa estão a milhas de distância da precisão na maior parte dos outros continentes (algumas das localizações apontadas tiveram uma ligeira correcção), mas a localização apontada para Santa Isabel parece correcta. |
Espreitando à volta, surgem dois nomes desconhecidos - Quiluanda e Dombe-ia-Gola. O primeiro deve ser mais uma imprecisão da Google, pois Quiluanda aparece em muitas notícias como uma cidade de razoável dimensão e não o ponto no mato que é sugerido. Já a outra povoação. igualmente mais localizada, deve corresponder a um minúsculo aldeamento que parece ter surgido no acesso da picada de Santa Isabel à estrada principal.vê-se que a região pouco ou nada evoluiu (a guerra civil foi longa e dura), mas constata-se o crescimento do Quimufuque e pouco mais.
É algo desesperante a constatação de, naquele mar de verde cerrado, não se vislumbrar qualquer vestígio do que foi Santa Isabel. A nordeste, a cerca de 3 kms, há sinais de vida que devidamente ampliados, confirmam a existência de um aldeamento. Pela localização, a memória obriga a ligá-lo à fazenda Vamba, que várias vezes visitámos no decurso de actividade operacional. A memória já não dá para tanto, mas no topo da ampliação, aquele casario grande, com o largo à porta parece confirmar mão de europeu, e, se assim é surge a inevitável pergunta: porquê a morte de S. Isabel, e a sobrevivência desta?
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Facilidade de acesso? Proximidade da população local?
O desconforta da questão, para quem guarda de Santa Isabel uma imagem saudosa, convida a uma busca mais minuciosa que revela na imensidade verde sinais de construção a cerca de 200 metros do local marcado, o que, dada a imprecisão geral é insignificante. Restos dos terraços do café? Nem a forma nem a orografia envolvente sustentam essa ideia, mas alguma coisa lá está, e não é a casa que parece, pois a vista é de cima e o aparente telhado não passa duma ilusão. Inútil se torna igualmente procurar outros vestígios, para além do Quimufuque, que, embora não identificado aparece no mapa, no ponto da picada que recordamos. |
Havia uma pista de avião junto à entrada, mas essa era ainda mais fácil de engolir pelo verde da natureza.
Também natural o desaparecimento da Vamba, tão precária eram as construções dessa base táctica, no entanto, um esforço de interpretação do manto verde que se estende para noroeste de S. Isabel, mais do que ver, permite sentir um traçado que, muito provavelmente era a picada que durante um ano tirou o sono a muitos de nós. Cabala, Mungage, são memórias assustadoras que o tempo afastou e o verde que as escondia continua a não revelar. Nessa zona, ainda e sempre apenas um nome sobre o verde, a novidade é Cangombe, nome para nós sem significado, mas que ocupa a zona remota onde a PIDE afiançava haver 5000 pessoas, com 150 armas, e para onde fomos várias vezes enviados para tentar morrer. Falhámos nesse objectivo, e essa foi a nossa maior vitória, e a razão porque a serena permanência nesta luxuriante organização cafeícula nos deixou as saudades da deliciosa fruta tropical, do esmagador espectáculo da chuva pontual e das trovoadas secas, com a floração do café como apogeu. |
Gostava de voltar a Santa Isabel! Dizem muitos, nos encontros anuais que apesar do inclemente desbaste do tempo, continuam a ser oportunidade de celebrar em conjunto o êxito da sobrevivência.
A menos que algum visitante ao local traga notícias contraditórias, tudo aponta para que a visita a Santa Isabel só possa ocorrer através da memória. e, para isso, aqui fica um bilhetinho de viagem.
A menos que algum visitante ao local traga notícias contraditórias, tudo aponta para que a visita a Santa Isabel só possa ocorrer através da memória. e, para isso, aqui fica um bilhetinho de viagem.
"Quem porfia mata caça", diz o povo e tem razão.
Depois de muito procurar encontrei no Facebook um angolano de nome António Jacinto Tony Panzo, que publicou a foto ao lado. Num texto breve informa que a fazenda Santa Isabel integra agora a fazenda Catuta II. Na foto é visível uma máquina a desflorestar, pelo que parece confirmar-se a minha convicção da fazenda ter sido deixada ao abandono, e engolida pela selva, estando agora a ser recuperada. Tentei estabelecer contacto com o Panzo, para tentar mais alguma informação, mas até agora sem sucesso. |