Levantamento
O rancho era fulcro de enormes preocupações, centro de negociatas, e foco de conflitos.
Tive a primeira aproximação aos problemas do rancho quando, acabada a especialidade, fui colocado em Mafra, e, dias depois nomeado oficial de prevenção. A missâo era co-adjuvar o oficial de dia, em várias situações, uma delas... "fazer o rancho".
Havia sempre o pânico dum levantamento de rancho, situação muito complicada de resolver no plano disciplinar, e onde havia sempre vítimas, pelo que "fazer o rancho" era uma séria responsabilidade.
Fazer o rancho consistia primeiro na prova - os cozinheiros levavam ao oficial de dia um tabuleiro com a amostra da refeição que iriam distribuir ao pessoal. O oficial de dia provava, verificava as quantidades, e autorizava a distribuição. Calhava ao oficial de prevenção percorrer os refeitórios onde comiam quase dois mil homens, e verificar se tudo se passava bem. E não passou!
Numa das mesas um soldado chamou-me e reclamou:
- Oh meu aspirante, isto é bacalhau que se dê a uma pessoa?
Tinha razão - a "posta" que lhe calhou era mais ou menos do tamanho de um dedo, pelo que chamei um dos cozinheiros e mandei reforçar a dose.
- Não há problemas meu aspirante, nós damos-lhes o nosso bacalhau, e depois comemos uns ovos.
Simpático... mas não me convenceu. As doses foram reforçadas, o pessoal agradeceu-me, e no final voltei à cozinha, onde, toda a gente comia... bacalhau, claro.
Mais sério foi um problema ainda em Mafra, na messe de oficiais. Entrámos, e havia "um cheirinho a m..." anunciando que o almoço era dobrada, e que alguém se tinha esquecido de a lavar devidamente. O embaraço foi total, e apenas um oficial tocou na dobrada - o comandante. Não sei as consquências, mas, oficialmente não houve levantamento de rancho.
Em África não tivemos grandes razões de queixa. Comia-se bem, para as circunstâncias em que se vivia. Alguns... muito bem mesmo.
O alferes de transmissões do batalhão, era um gordinho desajeitado, que, manifestamente tinha muito jeito para comer... e apenas isso.
No dia a dia, o tabuleiro das amostras, depois do oficial de dia provar, era praticamente uma refeição adicional, que o pessoal da cozinha repartia entre si. Mas, no dia em que estava de serviço, o alferes Serpa mamava a amostra do rancho toda, mamava a amostra da messe de sargentos, mamava a da messe de oficiais, e... ia almoçar (era, aliás, o único oficial que conheci, que gostava de fazer de oficial de dia. Para comer, claro!).
Alguns soldados que lhe levavam as amostras ficavam tão enjoados que já não conseguiam comer.
O mesmo aconteceu uma noite ao Ferrer, a ver-me comer a mim.
Acabado de chegar duma operação de seis dias, fiquei sozinho para jantar. Era empadão (coisa que até nem aprecio), e o Ferrer apresentou o tabuleiro que costumávamos dividir entre os cinco. Não sei o que me deu, mas... limpei o tabuleiro. Nunca tinha acontecido nem voltou a repetir-se, essa sensação de... não ter fundo.
Mas dizia eu que comíamos bem - em Santa Isabel a fazenda proprocionava géneros frescos, e em Quiximba, onde as coisas eram mais difíceis, a ideia do capitão de destacar um homem para abastecer semanalmente de peixe, em Ambrizete, foi preciosa. Calhou ao Cunha, um cabo do meu grupo que era natural de Angola e se mexia bem no território.
Apesar de tudo, alguns sofriam. Lembro-me de, uma vez, o Sousa Santos, ao ver-me comer um frango assado, que sabia a... frango assado, atirar com os talheres e desabafar:
- Oh pá, não sei como consegues comer isto. Tu és incapaz de ter um prazer na vida.
Lá lhe respondi que era exactamente ao contrário - eu era capaz de tirar prazer de uma perna de frango a saber a frango, ele é que só conseguia ter prazer em situações infelizmente raras e difíceis de conseguir.
Problemas só em Zau Évoa, onde um capitão com outra mentalidade nos colocava muito dependentes da caça.
E foi em Zau ÉVoa que tivemos um levantamento de rancho.
Era feijoada, comi, soube-me como de costume, quando um furriel me trouxe a notícia - o pessoal recusa-se a comer.
Bronca!
Lá fui ter com a rapaziada que se queixava que a feijoada estava estragada. Não concordei, expliquei que eu tinha comido e estava normal, mas eles insistiam que não.
Chamei o furriel que funcionava como vagomestre, o Veiga, e perguntei-lhe se a comida era diferente, ao que ele, muito atrapalhado me respondeu:
-É o chouriço, meu alferes, ele tinha um cheiro de que não gostei, e não o levei para a messe, mas pensei que o pessoal ia protestar se a feijoada não tivesse chouriço e deixei seguir para o rancho.
Estava tramado, o Veiga! Se fizesse o relatório, lá vinham as ameaças de ser mandado para o Leste, a prisão, o prolongamento da comissão, eu sei lá que tragédias o esperavam.
Lembrei-me dos "ovos" de Mafra, e ele lá conseguiu desenrascar qualquer ideia para substituir a feijoada.
O pessoal tinha bom feitio e aceitou o percalço, dispensando-me de escrever, e garantindo ao Veiga o direito a regressar connosco.
(Narrativa de Avelino Lopes)