A torcida
Havia já um esforço muito grande das autoridades ,militares portuguesas para proporcionar aos militares alguma condições mínimas de sobrevivência. Num clima tão quente como o de Angola, uma das necessidades prioritárias era a conservação pelo frio. Os frigoríficos, embora por essa altura ainda não tivessem chegado a mais de metade da população nacional, já eram aparelho comum em muitas dos milhares de casas com electricidade,só que, electricidade no mato...
A solução foi recorrer a frigoríficos a petróleo que funcionavam, mas exigiam alguns cuidados especiais. Nada melhor para entender esse cuidados que ler o interessante texto do camarada Egídio Cardoso no seu blog:
Como ia dizendo, só comecei a dar-me conta das particularidades dos frigoríficos a petróleo, depois de ter chegado ao Rivungo. No fim daquela infernal e quase interminável primeira viagem pelas picadas arenosas da savana, fui incumbido de receber a cantina e com ela o frigorífico que a equipava. A passagem do testemunho incluiu uma breve explicação do seu funcionamento e respectiva manutenção, instruções dadas de forma muito resumida já que os velhinhos tinham pressa em sair dali.
- Se queres ter cerveja fresca todos os dias, toma atenção! Avisou-me o furriel que eu iria substituir, enquanto assinava as guias que atestavam a transferência de responsabilidade.
Se a minha memória não me atraiçoa, o petróleo do frigorífico acabou ainda não tinha decorrido uma semana, pelo que chegara a altura de por à prova os ensinamentos que recebera: encher o depósito, ajeitar o pavio e pôr tudo a funcionar antes que as cervejas aquecessem.
Com a ajuda do cabo Almeida, que no Rivungo foi nomeado o cantineiro de serviço, meti mãos à obra. Retirei, com cuidado, o depósito do petróleo de formato achatado e que, em jeito de arrastadeira, encaixava debaixo do frigorífico, apaguei o pavio incandescente e segui os passos de forma meticulosa, devagar, para não fazer asneira e de forma a garantir que o Almeida aprendesse o ritual, já que, doravante, deveria ser ele a encarregar-se da tarefa.
Não era complicado, mas exigia algum cuidado e minúcia na preparação do pavio. Teria de se eliminar a parte carbonizada garantindo que a chama fosse o mais azulada possível; uma chama amarelada não produzia calor suficiente, fazia muito fumo, entupia a chaminé e o frigorífico não produzia frio. Depois, era só voltar a encaixar o depósito debaixo do frigorífico, garantir que a chama coincidia com o centro da chaminé e rezar para que as cervejas ficassem no ponto.
Daquela vez, a chama não ficou tão azul como deveria, mas, com o tempo, a técnica foi sendo aprimorada. O Almeida foi ganhando experiência, percebendo as manias do aparelho, descobrindo o jeitinho que garantia a chama ideal que, entrando pela chaminé, fazia a vez da electricidade transformando calor em frio.
Ganhou rotina e com isso, confiança. Até um dia. Quando procurava acertar no gargalo do depósito, a mão ter-lhe-á tremido e verteu uma boa porção de petróleo que se espalhou pela superfície delimitada por um rebordo que o reteve. Demorou algum tempo a aparar o pavio, colocou-o com a altura mais adequada, ajeitou o depósito e preparou-se para o acender. Não sei se por esquecimento, excesso de confiança ou se simplesmente deduziu que não haveria perigo, não limpou o excesso de petróleo que se derramara. Riscou o fósforo e no momento em que aproximou a chama do pavio, incendiou o combustível derramado.
A labareda irrompeu com violência, apanhando o Cabo que, de cócoras, se debruçara sobre o depósito para melhor executar a tarefa, não lhe deixando espaço para que se desviasse. A chama lambeu-lhe a parte superior do tronco, apanhou o pescoço e atingiu em cheio a cara do infeliz, incendiando-lhe o cabelo.
Quem quiser saber o resto terá que ir ao texto do Egídio Cardoso no blog Caçadores 3441, mas esta passagem já deixa entender porque é que, um dia, Zau Évoa acordou envolta em fumo, com o frigorífico da messe em chamas. A substituição foi imediata, e a reposição dos géneros ardidos aconteceu sem reservas, apesar de no auto constar material capaz de encher 3 arcas e de "terem também ardido" 17 garrafões de vinho verde que estariam empilhados ao lado do frigorífico.
Mas o enfermeiro Gomes tem outras histórias e uma delas, contada no último almoço, diz respeito ao "Grade", um soldado que já não conheci, e que, consultando a lista do pessoal julgo ser o Afonso Grades de Carvalho.
Um dia, o frigorífico avariou - pode lá ser...
O Grades era técnico de manutenção e voluntariamente tomou conta da verificação da máquina, constatando que era a torcida que se tinha consumido, e precisava de ser substituída. Desembaraçado e sem incomodar ninguém, foi ao Quitexe, comprou uma torcida, montou-a, e com o frigorífico em marcha apresentou a conta ao primeiro-sargento.
Foi o bom e o bonito... Onde é que estava a autorização, o requerimento, a ordem de compra, as guias, a cativação, todos esses mimos da burocracia?
Não havia forma de o Grades ser reembolsado, e a reacção foi espontânea:
- O frigorífico é vosso, a torcida é minha...
Desmontou-a, guardou-a, e o frigorífico lá ficou parado à espera das requisições, das guias, dos etcs.
Não estava para aquilo, o Grades, e pediu ao pessoal da enfermagem que, na próxima mazela o evacuassem para Luanda. Não tardou muito para que o paludismo o ajudasse, e cheio duma pequena febre foi evacuado para o hospital militar, onde tinha contactos.
Tão bons contactos, que dias depois, chegou de Luanda uma mensagem a avisar que o Grades não regressaria, e seria substituído por um equivalente.
Não sei quem foi o "equivalente", não sei se sabia de torcidas, nem sei onde é que o Grades foi vender a sua torcida, ou seja, fica muito por contar...
contada por Avelino Lopes
A solução foi recorrer a frigoríficos a petróleo que funcionavam, mas exigiam alguns cuidados especiais. Nada melhor para entender esse cuidados que ler o interessante texto do camarada Egídio Cardoso no seu blog:
Como ia dizendo, só comecei a dar-me conta das particularidades dos frigoríficos a petróleo, depois de ter chegado ao Rivungo. No fim daquela infernal e quase interminável primeira viagem pelas picadas arenosas da savana, fui incumbido de receber a cantina e com ela o frigorífico que a equipava. A passagem do testemunho incluiu uma breve explicação do seu funcionamento e respectiva manutenção, instruções dadas de forma muito resumida já que os velhinhos tinham pressa em sair dali.
- Se queres ter cerveja fresca todos os dias, toma atenção! Avisou-me o furriel que eu iria substituir, enquanto assinava as guias que atestavam a transferência de responsabilidade.
Se a minha memória não me atraiçoa, o petróleo do frigorífico acabou ainda não tinha decorrido uma semana, pelo que chegara a altura de por à prova os ensinamentos que recebera: encher o depósito, ajeitar o pavio e pôr tudo a funcionar antes que as cervejas aquecessem.
Com a ajuda do cabo Almeida, que no Rivungo foi nomeado o cantineiro de serviço, meti mãos à obra. Retirei, com cuidado, o depósito do petróleo de formato achatado e que, em jeito de arrastadeira, encaixava debaixo do frigorífico, apaguei o pavio incandescente e segui os passos de forma meticulosa, devagar, para não fazer asneira e de forma a garantir que o Almeida aprendesse o ritual, já que, doravante, deveria ser ele a encarregar-se da tarefa.
Não era complicado, mas exigia algum cuidado e minúcia na preparação do pavio. Teria de se eliminar a parte carbonizada garantindo que a chama fosse o mais azulada possível; uma chama amarelada não produzia calor suficiente, fazia muito fumo, entupia a chaminé e o frigorífico não produzia frio. Depois, era só voltar a encaixar o depósito debaixo do frigorífico, garantir que a chama coincidia com o centro da chaminé e rezar para que as cervejas ficassem no ponto.
Daquela vez, a chama não ficou tão azul como deveria, mas, com o tempo, a técnica foi sendo aprimorada. O Almeida foi ganhando experiência, percebendo as manias do aparelho, descobrindo o jeitinho que garantia a chama ideal que, entrando pela chaminé, fazia a vez da electricidade transformando calor em frio.
Ganhou rotina e com isso, confiança. Até um dia. Quando procurava acertar no gargalo do depósito, a mão ter-lhe-á tremido e verteu uma boa porção de petróleo que se espalhou pela superfície delimitada por um rebordo que o reteve. Demorou algum tempo a aparar o pavio, colocou-o com a altura mais adequada, ajeitou o depósito e preparou-se para o acender. Não sei se por esquecimento, excesso de confiança ou se simplesmente deduziu que não haveria perigo, não limpou o excesso de petróleo que se derramara. Riscou o fósforo e no momento em que aproximou a chama do pavio, incendiou o combustível derramado.
A labareda irrompeu com violência, apanhando o Cabo que, de cócoras, se debruçara sobre o depósito para melhor executar a tarefa, não lhe deixando espaço para que se desviasse. A chama lambeu-lhe a parte superior do tronco, apanhou o pescoço e atingiu em cheio a cara do infeliz, incendiando-lhe o cabelo.
Quem quiser saber o resto terá que ir ao texto do Egídio Cardoso no blog Caçadores 3441, mas esta passagem já deixa entender porque é que, um dia, Zau Évoa acordou envolta em fumo, com o frigorífico da messe em chamas. A substituição foi imediata, e a reposição dos géneros ardidos aconteceu sem reservas, apesar de no auto constar material capaz de encher 3 arcas e de "terem também ardido" 17 garrafões de vinho verde que estariam empilhados ao lado do frigorífico.
Mas o enfermeiro Gomes tem outras histórias e uma delas, contada no último almoço, diz respeito ao "Grade", um soldado que já não conheci, e que, consultando a lista do pessoal julgo ser o Afonso Grades de Carvalho.
Um dia, o frigorífico avariou - pode lá ser...
O Grades era técnico de manutenção e voluntariamente tomou conta da verificação da máquina, constatando que era a torcida que se tinha consumido, e precisava de ser substituída. Desembaraçado e sem incomodar ninguém, foi ao Quitexe, comprou uma torcida, montou-a, e com o frigorífico em marcha apresentou a conta ao primeiro-sargento.
Foi o bom e o bonito... Onde é que estava a autorização, o requerimento, a ordem de compra, as guias, a cativação, todos esses mimos da burocracia?
Não havia forma de o Grades ser reembolsado, e a reacção foi espontânea:
- O frigorífico é vosso, a torcida é minha...
Desmontou-a, guardou-a, e o frigorífico lá ficou parado à espera das requisições, das guias, dos etcs.
Não estava para aquilo, o Grades, e pediu ao pessoal da enfermagem que, na próxima mazela o evacuassem para Luanda. Não tardou muito para que o paludismo o ajudasse, e cheio duma pequena febre foi evacuado para o hospital militar, onde tinha contactos.
Tão bons contactos, que dias depois, chegou de Luanda uma mensagem a avisar que o Grades não regressaria, e seria substituído por um equivalente.
Não sei quem foi o "equivalente", não sei se sabia de torcidas, nem sei onde é que o Grades foi vender a sua torcida, ou seja, fica muito por contar...
contada por Avelino Lopes