Cacimbo e confinamento
Hastear da Bandeira Na alvorada a formatura iniciou ... e a pouco e pouco lá fomos arrumando as filas ...alguns ainda mal lavaram os olhos, outros ainda vêm a sonhar com a Brigitte... as camisas sem botões ou desabotoadas, os colarinhos enrolados e algumas botas sem atacadores, mas a não ser os doentes e os sentinelas, todos lá estavam... As vozes de comando começaram a ouvir-se ... Atenção Companhiiiiaaaaaa.. ...Seeeeeeent...ouppppp........... Onbrooooooo... hhharmaaa... corneteiro... tennn ten ten tatammm.....Tamtamtam ten ten ten ten ..... Apresentar AAAr...maHHHH.... A Bandeira... é colocada e inicia a sua ascensão... lenta...lentamente. Alguma coisa ferve no nosso íntimo... O corneteiro ensaia e desenvolve o seu toque de hastear.... A companhia inteira perfilada com o apresentar de armas ... o sol a sair da Beira Baixa ou do Canacassala... De repente inicia-se o coro das carpideiras... UUUUUUAAAUUUUIIIIIIOOOOOUUUUUUU ......UUUUUHHHHIIIIIIooOOOOiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu ............................. Ao lado da companhia como soldados valentes , cantavam o seu hino...sentados , os nossos 83 cães....rafeiros.... Era lindo..... Sebastião Pires |
Estamos em 2020, longe das memórias de guerra, até que um novo inimigo as vem despertar. O “In” agora não levanta dúvidas, não é turra nem guerrilheiro patriótico, é um miserável vírus a fazer pela vida à nossa custa, e lançou o mundo para uma situação impensável apenas alguns meses atrás – isolamento social e confinamento. Pensando bem, nada de novo para nós. Muitos dos traumas de guerra resultam do confinamento dentro do arame, em alternância com o stress de não se saber donde pode vir o tiro, morteirada ou contágio sempre que se sai da segurança do arame farpado ou de casa. O que é que se vai passar connosco, com os nossos amigos e vizinhos à medida que esta comissão de serviço sanitário for caminhando para o fim? O que é que o "cacimbo" vai fazer nessas cabeças? Sim, porque o cacimbo tem costas largas. À medida que a comissão se aproximava do fim, a veterania ia abrindo espaço para comportamentos insólitos ou mesmo desequilibrados, genericamente atribuídos ao “cacimbo”, ou seja, ao mau humor provocado pela longa exposição à chuva miudinha e enfadonha de muitas madrugadas. Na realidade a maior parte do “cacimbo” era consequência do confinamento, pois era frequente “cacimbo” em militares com pouca ou nenhuma exposição ao cacimbo. As reacções podiam ser as mais diversas e imprevisíveis. Havia as perigosas, como a daquele soldado julgo que do 1.º grupo, caladinho e cumpridor, que dias antes de acabar a comissão e o confinamento resolveu largar uma granada na caserna, e teve a sorte de não atingir ninguém; havia as divertidas como aquela que conto em A galinha turista; mas havia também as estranhas, como a daquele alferes que substituímos em Quiximba, chamado… Não sei! Ainda fui bisbilhotar no blog da unidade que nos antecedeu, a Ccaç 3480 do Bcaç. 3869, mas nada encontrei, apenas uma útil história que transcrevo aqui ao lado. |
Confirmo a veracidade da história, também em Quiximba, mas atrevo-me a completá-la.
O ritual canino do hastear de bandeira repetia-se ao arriar, mas aí com mais tensão. Aproximando-se as 17 horas, os cães iam-se alinhando junto à bandeira, num evidente crescente de nervosismo, e mal o corneteiro começava a tocar repetiam, muito afinados, o coro de uivos.
Mal o toque de ordem acabava, disparavam para a porta de armas em louca correria, e só paravam lá fora à espera dos amigos humanos.
Destes, o primeiro a sair era sempre o alferes… cacimbo. A tarde era por norma um processo de crescente interiorização e isolamento, com a tensão acumular-se de forma indisfarçável, tornando os minutos que faltavam em horas, e os segundos em eternidades. O toque de ordem era o rastilho de explosão de liberdade, e o alferes cacimbo só era batido pelos cães na corrida para a rua.
A estrada, numa longa reta, separava a sanzala, situada a norte do quartel, da pista de aviação, que começando em frente ao quartel se estendia até quase à ponta oposta da povoação, a cerca de 600 metros.
Compenetrado, silencioso, sem falar a ninguém, sem ver ninguém, o alferes cacimbo caminhava pela estrada até ao fim da pista, e voltava rejuvenescido.
O alferes libertado reentrava serenamente no arame, cordial, distendido, e perante a minha surpresa por esse comportamento recorrente e irracional explicava-o da forma mais eloquente possível – com um sorriso.
O ritual canino do hastear de bandeira repetia-se ao arriar, mas aí com mais tensão. Aproximando-se as 17 horas, os cães iam-se alinhando junto à bandeira, num evidente crescente de nervosismo, e mal o corneteiro começava a tocar repetiam, muito afinados, o coro de uivos.
Mal o toque de ordem acabava, disparavam para a porta de armas em louca correria, e só paravam lá fora à espera dos amigos humanos.
Destes, o primeiro a sair era sempre o alferes… cacimbo. A tarde era por norma um processo de crescente interiorização e isolamento, com a tensão acumular-se de forma indisfarçável, tornando os minutos que faltavam em horas, e os segundos em eternidades. O toque de ordem era o rastilho de explosão de liberdade, e o alferes cacimbo só era batido pelos cães na corrida para a rua.
A estrada, numa longa reta, separava a sanzala, situada a norte do quartel, da pista de aviação, que começando em frente ao quartel se estendia até quase à ponta oposta da povoação, a cerca de 600 metros.
Compenetrado, silencioso, sem falar a ninguém, sem ver ninguém, o alferes cacimbo caminhava pela estrada até ao fim da pista, e voltava rejuvenescido.
O alferes libertado reentrava serenamente no arame, cordial, distendido, e perante a minha surpresa por esse comportamento recorrente e irracional explicava-o da forma mais eloquente possível – com um sorriso.
(Narrativa de Avelino Lopes)