O desertor
Quando, em 1961, o País foi fustigado com os ecos da tragédia de Angola, na inocência dos meus 15 anos, nunca imaginaria que as suas consequências viriam a atingir-nos - a mim e às centenas de milhar que, durante 13 anos, a guerra arrastou.
À medida que o passar dos anos ia tornando o espectro da guerra uma rotineira expectativa dos rapazes a caminho dos vinte anos, todos nos fomos apercebendo de que teríamos que tomar decisões difíceis de consequências imprevisíveis.
O “salto” tornou-se uma realidade omnipresente. Entre o vazio dum futuro sombrio num país fechado e miserável, com uma guerra no horizonte, e a aventura da rotura com esse País em busca de soluções longínquas, milhares partiram para a Europa e América, onde, com maior ou menor sacrifício, refizeram a vida, passando ao lado da guerra.
Arriscar partir, ou arriscar ficar era a grande dúvida.
Em geral, as opções eram ponderadas antes da incorporação, e as deserções, que eu saiba, eram raras, pois, às consequências próprias da fuga, somavam o estigma da traição.
Desde muito cedo me apercebi da pouca legitimidade do nosso envolvimento nas colónias e da ainda menor possibilidade de vitória.
Quando, em 1963, rumei a Lisboa para continuar os estudos, consegui entrar numa residência universitária vocacionada para receber alunos das colónias, mas abrindo os lugares excedentes a estudantes da província.
Passei assim 5 anos num ambiente intimamente ligado às colónias, e, embora entre os colegas houvesse de tudo, desde os defensores da supremacia branca aos militantes dos movimentos independentistas, pude ir-me apercebendo da verdadeira realidade social das colónias.
A vigilância da PIDE era feroz, e o facto de nunca se saber as ligações dos colegas, reduziam ao mínimo as conversas políticas, todos se concentrando na missão de somar competências para o futuro, mas mesmo assim muita coisa transparecia.
Não admira que dali saísse muita da matéria cinzenta mais relevante nos seus territórios de origem, e, embora as carreiras políticas viessem a ser dominadas pelos lideres da guerrilha, alguns assumiram plano de destaque nos países libertados. Perdi o contacto com a maioria deles, mas não deixei de acompanhar com interesse a carreira do meu amigo Veiga, que, com mais jeito para a política que para o futebol, veio a ser primeiro-ministro de Cabo Verde, e só não foi presidente por 17 votos.
Em 1965, na companhia de dois moçambicanos e um angolano, deixámos a residência, e alugámos um apartamento, que só abandonámos quando o Mena… fugiu!
Curiosa a história do Mena Abrantes.
Ligado ao MPLA (suspeitava-o, mas só o confirmei depois), o Mena sabia-se alvo da PIDE, estava impossibilitado de deixar o País e de movimentos bem tolhidos.
Lembro-me de, um dia, ele me ter pedido que lhe levasse uma carta ao aeroporto. Nada de estranho – eu sabia que a carta posta no aeroporto chegava a Angola no dia seguinte, e quando a notinha começava a faltar, a urgência justificava-se. Só que, quando cheguei ao aeroporto deparei-me com uma multidão correndo em debandada. Passou por mim outro angolano amigo, que me avisou – “é a PIDE, foge”.
Não tinha nada na consciência, pelo que avancei contra a corrente, e entrei no aeroporto, de carta bem estendida na mão para mostrar ao que ia, e atravessei o átrio que parecia um campo de batalha. Fui relanceando o olhar, apenas parando quando uma mulher, de gatas no chão, a meus pés, me suplicou – “os meus óculos, perdi os meus óculos”. Não havia nas proximidades óculos inteiros ou partidos, pelo que continuei a avançar até ao fundo, onde a caixa do correio me esperava.
Voltei para trás, sem ninguém me abordar, e já não vi violência, apenas alguns pequenos grupos de pessoas a falar nervosamente, num dos quais vislumbrei uma figura conhecida, o dr. Vasco da Gama Fernandes.
Saí do aeroporto sem saber o que se passara, e foi cá fora que fiquei a saber que se tratara da deportação do dr. Mário Soares. Uma multidão foi ao aeroporto despedir-se dele, mas a PIDE instalou-se estrategicamente, e quem se amontoara na varanda teve que passar por um estreito corredor de bastões, com o estrago que facilmente se imagina.
O Mena sabia, mas vigiado como estava, preferiu não arriscar, e mandar um mensageiro.
À medida que o passar dos anos ia tornando o espectro da guerra uma rotineira expectativa dos rapazes a caminho dos vinte anos, todos nos fomos apercebendo de que teríamos que tomar decisões difíceis de consequências imprevisíveis.
O “salto” tornou-se uma realidade omnipresente. Entre o vazio dum futuro sombrio num país fechado e miserável, com uma guerra no horizonte, e a aventura da rotura com esse País em busca de soluções longínquas, milhares partiram para a Europa e América, onde, com maior ou menor sacrifício, refizeram a vida, passando ao lado da guerra.
Arriscar partir, ou arriscar ficar era a grande dúvida.
Em geral, as opções eram ponderadas antes da incorporação, e as deserções, que eu saiba, eram raras, pois, às consequências próprias da fuga, somavam o estigma da traição.
Desde muito cedo me apercebi da pouca legitimidade do nosso envolvimento nas colónias e da ainda menor possibilidade de vitória.
Quando, em 1963, rumei a Lisboa para continuar os estudos, consegui entrar numa residência universitária vocacionada para receber alunos das colónias, mas abrindo os lugares excedentes a estudantes da província.
Passei assim 5 anos num ambiente intimamente ligado às colónias, e, embora entre os colegas houvesse de tudo, desde os defensores da supremacia branca aos militantes dos movimentos independentistas, pude ir-me apercebendo da verdadeira realidade social das colónias.
A vigilância da PIDE era feroz, e o facto de nunca se saber as ligações dos colegas, reduziam ao mínimo as conversas políticas, todos se concentrando na missão de somar competências para o futuro, mas mesmo assim muita coisa transparecia.
Não admira que dali saísse muita da matéria cinzenta mais relevante nos seus territórios de origem, e, embora as carreiras políticas viessem a ser dominadas pelos lideres da guerrilha, alguns assumiram plano de destaque nos países libertados. Perdi o contacto com a maioria deles, mas não deixei de acompanhar com interesse a carreira do meu amigo Veiga, que, com mais jeito para a política que para o futebol, veio a ser primeiro-ministro de Cabo Verde, e só não foi presidente por 17 votos.
Em 1965, na companhia de dois moçambicanos e um angolano, deixámos a residência, e alugámos um apartamento, que só abandonámos quando o Mena… fugiu!
Curiosa a história do Mena Abrantes.
Ligado ao MPLA (suspeitava-o, mas só o confirmei depois), o Mena sabia-se alvo da PIDE, estava impossibilitado de deixar o País e de movimentos bem tolhidos.
Lembro-me de, um dia, ele me ter pedido que lhe levasse uma carta ao aeroporto. Nada de estranho – eu sabia que a carta posta no aeroporto chegava a Angola no dia seguinte, e quando a notinha começava a faltar, a urgência justificava-se. Só que, quando cheguei ao aeroporto deparei-me com uma multidão correndo em debandada. Passou por mim outro angolano amigo, que me avisou – “é a PIDE, foge”.
Não tinha nada na consciência, pelo que avancei contra a corrente, e entrei no aeroporto, de carta bem estendida na mão para mostrar ao que ia, e atravessei o átrio que parecia um campo de batalha. Fui relanceando o olhar, apenas parando quando uma mulher, de gatas no chão, a meus pés, me suplicou – “os meus óculos, perdi os meus óculos”. Não havia nas proximidades óculos inteiros ou partidos, pelo que continuei a avançar até ao fundo, onde a caixa do correio me esperava.
Voltei para trás, sem ninguém me abordar, e já não vi violência, apenas alguns pequenos grupos de pessoas a falar nervosamente, num dos quais vislumbrei uma figura conhecida, o dr. Vasco da Gama Fernandes.
Saí do aeroporto sem saber o que se passara, e foi cá fora que fiquei a saber que se tratara da deportação do dr. Mário Soares. Uma multidão foi ao aeroporto despedir-se dele, mas a PIDE instalou-se estrategicamente, e quem se amontoara na varanda teve que passar por um estreito corredor de bastões, com o estrago que facilmente se imagina.
O Mena sabia, mas vigiado como estava, preferiu não arriscar, e mandar um mensageiro.
Nessa altura, para além dos estudos o Mena namorava uma simpática hospedeira da TAP e integrava o grupo de teatro da faculdade de Direito.
Foi graças a isso que me tornei actor de cinema. Em 1970 o grupo de teatro foi convidado pelo prestigiado realizador de cinema António Macedo, para protagonizar o filme “Nojo aos cães”, onde havia uma personagem que tocava viola, coisa que ninguém no grupo sabia. O Mena indicou-me, fui selecionado, e lá vivi a minha aventura cinematográfica. Mas um dia, novo convite surgiu, para um festival em San Sebastian. |
O Mena era actor de destaque, pelo que a PIDE teve que arriscar deixá-lo ir.
Foi uma galhofa quando o Mena, para uma digressão de 5 dias, preparou duas malas com montanhas de roupa e sapatos, que justificou com o argumento de que San Sebastian era muito fria, e de tempo incerto.
Cumpriu rigorosamente o programa, e, no último dia, desapareceu. Nunca mais o vi.
Vim a saber que a namorada preparara tudo lá fora, e que, depois de quatro anos de exílio na Alemanha, o 25 de Abril lhe permitira voltar a Angola, depois de trocar a namorada pela irmã mais nova.
Os dois colegas moçambicanos estavam livres da guerra – um fora atirado para uma cadeira de rodas aos 4 anos pela poliomielite, e o outro, um verdadeiro Hércules, que vi bater o Tarzan Taborda num braço de ferro (alegadamente a sua única derrota), era filho do director do hospital da ilha de Moçambique, que lhe forneceu uma colecção de doenças que o livraram na inspecção.
Restava eu para a guerra, mas com muito pouca vontade…
Essa pouca vontade foi ainda mais abalada em junho de 1971 por uma linda jugoslava que depois de cinco animados dias em Santarém se recusava a voltar a casa sem me levar. Eu tinha acabado o curso, acabavam-se os adiamentos, e ela não entendia como é que eu me dispunha a arriscar a guerra. Nem a ilha no Adriático que ela prometeu oferecer-me me demoveu, e lá nos despedimos, com eu a sentir-me um aventureiro idiota.
Não foi o último abanão, que aconteceu dois meses depois em Bruxelas, onde ouvi contar a mais linda história de fuga à guerra.
Anos antes, um rapaz ribatejano fora mais um a dar o “cavanço”, mas adoeceu na Bélgica. A mãe não hesitou, e pôs-se a caminho para cuidar dele. Como a nota era curta teve de arranjar trabalho, e com talento e muito suor, em pouco tempo passou de empregada eventual para dona do restaurante.
Abancámos cinco dias no restaurante Alfama, onde se juntavam alguns resistentes que fizeram os impossíveis para lá me reter. Lembro-me que me garantiam um ordenado 4 vezes superior ao que vim a auferir quando, regressado da guerra, consegui emprego.
Uma longa história, para explicar quão perto sempre estive de ser mais um, e a luta que travei para não recuar.
Quando parti para África tinha perfeita consciência que ia estar do lado errado da guerra, sem qualquer hipótese de sucesso, pelo que defini como objectivo pessoal sobreviver, matar só se estritamente necessário para garantir esse objectivo primordial, e devolver à família todos os que de mim viessem a depender.
Foi uma galhofa quando o Mena, para uma digressão de 5 dias, preparou duas malas com montanhas de roupa e sapatos, que justificou com o argumento de que San Sebastian era muito fria, e de tempo incerto.
Cumpriu rigorosamente o programa, e, no último dia, desapareceu. Nunca mais o vi.
Vim a saber que a namorada preparara tudo lá fora, e que, depois de quatro anos de exílio na Alemanha, o 25 de Abril lhe permitira voltar a Angola, depois de trocar a namorada pela irmã mais nova.
Os dois colegas moçambicanos estavam livres da guerra – um fora atirado para uma cadeira de rodas aos 4 anos pela poliomielite, e o outro, um verdadeiro Hércules, que vi bater o Tarzan Taborda num braço de ferro (alegadamente a sua única derrota), era filho do director do hospital da ilha de Moçambique, que lhe forneceu uma colecção de doenças que o livraram na inspecção.
Restava eu para a guerra, mas com muito pouca vontade…
Essa pouca vontade foi ainda mais abalada em junho de 1971 por uma linda jugoslava que depois de cinco animados dias em Santarém se recusava a voltar a casa sem me levar. Eu tinha acabado o curso, acabavam-se os adiamentos, e ela não entendia como é que eu me dispunha a arriscar a guerra. Nem a ilha no Adriático que ela prometeu oferecer-me me demoveu, e lá nos despedimos, com eu a sentir-me um aventureiro idiota.
Não foi o último abanão, que aconteceu dois meses depois em Bruxelas, onde ouvi contar a mais linda história de fuga à guerra.
Anos antes, um rapaz ribatejano fora mais um a dar o “cavanço”, mas adoeceu na Bélgica. A mãe não hesitou, e pôs-se a caminho para cuidar dele. Como a nota era curta teve de arranjar trabalho, e com talento e muito suor, em pouco tempo passou de empregada eventual para dona do restaurante.
Abancámos cinco dias no restaurante Alfama, onde se juntavam alguns resistentes que fizeram os impossíveis para lá me reter. Lembro-me que me garantiam um ordenado 4 vezes superior ao que vim a auferir quando, regressado da guerra, consegui emprego.
Uma longa história, para explicar quão perto sempre estive de ser mais um, e a luta que travei para não recuar.
Quando parti para África tinha perfeita consciência que ia estar do lado errado da guerra, sem qualquer hipótese de sucesso, pelo que defini como objectivo pessoal sobreviver, matar só se estritamente necessário para garantir esse objectivo primordial, e devolver à família todos os que de mim viessem a depender.
Claro que são projectos que não se explicitam, e só uma vez tive que o fazer, já perto do final da comissão, quando um soldado de quem recordo a cara mas não o nome (aliás, ele era tratado por uma alcunha que também esqueci (“Lapuz”, seria?), ao receber a notícia da morte em combate de um amigo desabafou que se apanhasse um “turra” lhe cortava uma orelha para recordação.
Surpreendi-o quando lhe disse que se o fizesse o mandaria imediatamente prender, pois uma coisa é lutar pela vida outra é descer ao nível da selvajaria. Expliquei-lhe mais do que gostaria, mas penso tê-lo esclarecido. Felizmente nunca apareceu nenhum “turra” para o poder comprovar. Não vi, da parte de ninguém, dentro da companhia, uma grande convicção relativamente à guerra, mas todos me pareciam resignados ao desígnio comum de deixar correr o tempo, com muito cuidado, mas também optimismo. |
Foi por isso com surpresa que, 44 anos depois, descobri ter havido um desertor, na nossa companhia, ainda para mais no meu grupo.
De seu nome Durval, o protagonista parece que possuía e geria uma bela estampa física, que cultivava cuidadosamente em ginásio, e que lhe chegara a render o título de mister Angola.
Talvez arrebatado pelo aforismo de que as fardas favorecem os homens, tomou a excepcional decisão de se voluntariar para o exército.
Chegado à sua Angola natal, a vivência em Santa Isabel nada tinha a ver com os seus hábitos e sonhos, muito embora se tenha empenhado em adaptar o meio aos seus gostos e opções.
Montou um ginásio, onde não foi secundado como esperava, e nem as torturas que aplicou a uma viola conseguiram gerar muita simpatia.
Era tudo demasiado penoso, com a agravante de ter apenas a umas centenas de quilómetros a exuberante Angola civil onde nascera e se destacara.
Não resistiu, e um dia desapareceu.
Não conheço detalhes, não sei se usou uma licença da qual não regressou se se limitou a entrar no MVL e partir, não sei se levou arma e bagagem se partiu de mãos a abanar, muito menos sei como se aguentou face à inevitável perseguição da tenaz PIDE, durante os dois anos que mediaram até que o 25 de Abril libertou os Portugueses de tensões, em particular os deportados, refractários e desertores.
Safou-se, não há dúvida, como testemunha o Encantado, que o encontrou em 1976 em boa forma e disposição.
Uma questão curiosa se me levanta neste momento: E se o Durval Piairo Junior se lembra de aparecer num dos próximos almoços de confraternização, como vai ser recebido?
A deserção será aceite como um simples virar de costas à guerra, ou será entendida como um abandono ou mesmo traição aos companheiros condenados a, durante dois anos, partilhar com ele os riscos e as emoções?
Um tema interessante para o próximo almoço.
Bom apetite!
De seu nome Durval, o protagonista parece que possuía e geria uma bela estampa física, que cultivava cuidadosamente em ginásio, e que lhe chegara a render o título de mister Angola.
Talvez arrebatado pelo aforismo de que as fardas favorecem os homens, tomou a excepcional decisão de se voluntariar para o exército.
Chegado à sua Angola natal, a vivência em Santa Isabel nada tinha a ver com os seus hábitos e sonhos, muito embora se tenha empenhado em adaptar o meio aos seus gostos e opções.
Montou um ginásio, onde não foi secundado como esperava, e nem as torturas que aplicou a uma viola conseguiram gerar muita simpatia.
Era tudo demasiado penoso, com a agravante de ter apenas a umas centenas de quilómetros a exuberante Angola civil onde nascera e se destacara.
Não resistiu, e um dia desapareceu.
Não conheço detalhes, não sei se usou uma licença da qual não regressou se se limitou a entrar no MVL e partir, não sei se levou arma e bagagem se partiu de mãos a abanar, muito menos sei como se aguentou face à inevitável perseguição da tenaz PIDE, durante os dois anos que mediaram até que o 25 de Abril libertou os Portugueses de tensões, em particular os deportados, refractários e desertores.
Safou-se, não há dúvida, como testemunha o Encantado, que o encontrou em 1976 em boa forma e disposição.
Uma questão curiosa se me levanta neste momento: E se o Durval Piairo Junior se lembra de aparecer num dos próximos almoços de confraternização, como vai ser recebido?
A deserção será aceite como um simples virar de costas à guerra, ou será entendida como um abandono ou mesmo traição aos companheiros condenados a, durante dois anos, partilhar com ele os riscos e as emoções?
Um tema interessante para o próximo almoço.
Bom apetite!