A praxe
Cheguei à companhia em rendição individual, quando a unidade já levava três meses de comissão. Encontrei um bloco de três alferes amigos, com um entendimento algo classista, o que se traduziu nas distâncias que sempre impuseram ao capitão, ao pessoal em geral, e também ao camarada alferes recém-chegado.
As coisas começaram a correr mal logo na praxe com que decidiram receber-me.
Cheguei a Aldeia Viçosa no MVL, onde parei, com a indicação de que iria ser recolhido por uma coluna de pessoal da minha companhia. Assim aconteceu, e pouco tempo depois, uma nuvem de pó com três carros dentro avançou pelo alcatrão ao meu encontro. Apeou-se um croquete bem enfarinhado, onde se vislumbrava um sorriso simpático, e o Meia-dúzia, soldado de transmissões, apresentou-se-me, e convidou-me a aderir ao grupo da poeira. Assim fiz, e lá partimos para Santa Isabel, deixando o alcatrão ao fim de breves quilómetros, e entrando na estrada poeirenta (não pude deixar de perceber que eles tinham gasto grande parte da poeira na ida, porque no nosso regresso a poeira foi bem menor).
O alvoroço da chegada do maçarico, as apresentações, o primeiro contacto com aquele novo e estranho mundo, e, após uma rápida arrumação da bagagem, o convite dos camaradas alferes para... tomar chá.
Aquilo não era nada a guerra que eu esperava, com um militar gentil a servir-me chá e torradinhas, e mais marciano me comecei a sentir quando notei a delicadeza, quase reverência do tratamento, do"alferes" que me convidou.
Estava já a matutar no mundo estranho onde tinha caído quando a farsa foi desmontada - o "camarada alferes" era, na realidade o cabo cripto Ferrer, e o "cabo" que me enchia de torradinhas era o alferes Sousa Santos.
Riu-se com gosto da minha incapacidade inicial de distinguir quem era quem, mas não gostou de me ouvir dizer que, para mim, na tropa, o que distinguia os postos não eram as caras mas sim os galões, pelo que a troca me enganaria naturalmente.
O meu grupo estava, na altura, de serviço ao destacamento da Vamba, o lugar mais tenebroso da sua ainda curta experiência em Angola. Não estranhei, por isso, a provocação que foi o convite que me fizeram para o visitar ainda nessa noite. Aceitei imediatamente e lá partimos.
Foi uma visita curta - o furriel Abrantes, que comandava interinamente o grupo, formou-o e apresentou-mo, trocámos breves palavras e regressámos à companhia.
Mais uma vez desgostei o João Sousa Santos, quando lhe confessei que não tinha tido grande medo da viagem. Eu tinha percebido que o objectivo era exactamente esse - assustar-me - mas o tiro saiu pela culatra depois de simples exercício de lógica - se eles se dispunham a fazer a viagem comigo, sem necessidade, era porque o perigo não era tão grande como o pintavam.
Não era, nunca foi, felizmente, e de tudo aquilo apenas o chá e as torradinhas eram a sério, marcando a diferença entre a tropa e "o castelo", de onde as minhas frequentes descidas para me juntar às pessoas comuns eram vistas com maus olhos.
Até que, em Quiximba, se acabaram os castelos...
Contado por Avelino Lopes