Em vinha de olhos
Chegar a Luanda, vindo do mato, era uma sensação única e indescritível, abandonando todo o stress, esquecendo constrangimentos, vivendo o cosmopolitismo da zona branca da cidade. Eram os restaurantes da saudosa comida civil, o marisco a preço de tremoço, a praia, os gelados, a gente bonita nas ruas e cafés, a qualidade de vida duma cidade vibrante e em paz.
O contraste com o subdesenvolvimento do interior e as carências dos aquartelamentos exageravam a sensação de riqueza e liberdade, e a ausência de preconceitos comum nas sociedades tropicais. A realidade não era tão brilhante e risonha.
A sociedade angolana branca era dualista na relação com os militares, por um lado agradecendo aos que mantinham a guerra longe do seu dia-a-dia, por outro lado verberando o negócio que segundo eles, a guerra representava para muitos oficiais superiores, frequentemente acusados de prolongar uma guerra “já ganha”, para embolsar suplementos e mordomias.
Resultava essa convicção da circunstância de a pacífica Luanda, ser considerada, para todos os efeitos, inclusive remuneratórios, zona de guerra.
Eram muitas as dezenas de militares instalados em Luanda com as famílias, numa vida fácil e aparentemente faustosa, girando em torno do quartel-general e da messe de oficiais.
Era tão intensa a presença das famílias dos militares superiores, que a arraia miúda, os capitães e alferes em trânsito para e da guerra efetiva, se sentiam fortemente constrangidos no restaurante da messe de oficiais, com a transição brusca da austeridade grosseira dos quartéis para a sofisticação dum espaço "comandado" por senhoras com pouco mais para se entreter que a convivência mundana. Era um espaço das “coronelas”, onde um excesso, de linguagem, ou a mais pequena perda de compostura, valia a reprovação nem sempre silenciosa de dezenas de olhos das coronelas, e passava a ser motivo de conversa e censura na hora do café ou chá no salão anexo.
Porque a maioria dos meus amigos eram dos Comandos, sempre comi à mesa deles, o alvo mais fácil e consensual das coronelas, por não se prestarem a mesuras e salamaleques.
Mas um dia deram escândalo.
Havia muita dificuldade de adquirir bebidas alcoólicas nos circuitos militares, porque as facilidades de reabastecimento e a diferença de preços facilitavam esquemas comerciais clandestinos. Tudo era contingentado, e restringida qualquer compra adicional.
Se um qualquer oficial quisesse beber uma dúzia de garrafas de vinho à refeição, só tinha que as encomendar e pagar. Levar uma é que nem pensar.
Um dia os comandos tinham um jantar fora e precisavam de duas garrafas, pelo que, ao almoço, mandaram vir duas garrafas a mais, que abriram e voltaram a fechar, avisando o rapaz que servia à mesa que as garrafas “que não tinham acabado” eram para levar. O miúdo, que adorava os comandos, percebeu, e gentilmente ofereceu-se para as embrulhar em jornal, para ser mais discreto. Ideia louvada, e lá passámos ao salão do café.
Não tardou muito o rapaz, avançando seguro com o seu embrulho por entre as coronelas, com um sorriso cúmplice cada vez mais rasgado, em direcção à mesa onde tomávamos café.
De repente, uma das garrafas escapou do jornal, e catrapuz, espirrou vinho tinto para todo o lado.
O rapaz bloqueou! Tinto de vinho mas sem sangue, sobrevivendo ao fuzilamento de olhos por todas as madames da paróquia, já se via despedido, preso, cumprimentado pelo cavalo-marinho, sabia lá, contava que só os comandos o ajudariam, mas não queria denunciá-los. Foi um instante, mas o olhar de súplica foi tão dramático e intenso que não deixou nenhum de nós indiferente.
Foi o capitão Barbosa Henriques o primeiro comando a reagir, saltando em direcção ao jovem, clamando na sua voz tonitruante:
O contraste com o subdesenvolvimento do interior e as carências dos aquartelamentos exageravam a sensação de riqueza e liberdade, e a ausência de preconceitos comum nas sociedades tropicais. A realidade não era tão brilhante e risonha.
A sociedade angolana branca era dualista na relação com os militares, por um lado agradecendo aos que mantinham a guerra longe do seu dia-a-dia, por outro lado verberando o negócio que segundo eles, a guerra representava para muitos oficiais superiores, frequentemente acusados de prolongar uma guerra “já ganha”, para embolsar suplementos e mordomias.
Resultava essa convicção da circunstância de a pacífica Luanda, ser considerada, para todos os efeitos, inclusive remuneratórios, zona de guerra.
Eram muitas as dezenas de militares instalados em Luanda com as famílias, numa vida fácil e aparentemente faustosa, girando em torno do quartel-general e da messe de oficiais.
Era tão intensa a presença das famílias dos militares superiores, que a arraia miúda, os capitães e alferes em trânsito para e da guerra efetiva, se sentiam fortemente constrangidos no restaurante da messe de oficiais, com a transição brusca da austeridade grosseira dos quartéis para a sofisticação dum espaço "comandado" por senhoras com pouco mais para se entreter que a convivência mundana. Era um espaço das “coronelas”, onde um excesso, de linguagem, ou a mais pequena perda de compostura, valia a reprovação nem sempre silenciosa de dezenas de olhos das coronelas, e passava a ser motivo de conversa e censura na hora do café ou chá no salão anexo.
Porque a maioria dos meus amigos eram dos Comandos, sempre comi à mesa deles, o alvo mais fácil e consensual das coronelas, por não se prestarem a mesuras e salamaleques.
Mas um dia deram escândalo.
Havia muita dificuldade de adquirir bebidas alcoólicas nos circuitos militares, porque as facilidades de reabastecimento e a diferença de preços facilitavam esquemas comerciais clandestinos. Tudo era contingentado, e restringida qualquer compra adicional.
Se um qualquer oficial quisesse beber uma dúzia de garrafas de vinho à refeição, só tinha que as encomendar e pagar. Levar uma é que nem pensar.
Um dia os comandos tinham um jantar fora e precisavam de duas garrafas, pelo que, ao almoço, mandaram vir duas garrafas a mais, que abriram e voltaram a fechar, avisando o rapaz que servia à mesa que as garrafas “que não tinham acabado” eram para levar. O miúdo, que adorava os comandos, percebeu, e gentilmente ofereceu-se para as embrulhar em jornal, para ser mais discreto. Ideia louvada, e lá passámos ao salão do café.
Não tardou muito o rapaz, avançando seguro com o seu embrulho por entre as coronelas, com um sorriso cúmplice cada vez mais rasgado, em direcção à mesa onde tomávamos café.
De repente, uma das garrafas escapou do jornal, e catrapuz, espirrou vinho tinto para todo o lado.
O rapaz bloqueou! Tinto de vinho mas sem sangue, sobrevivendo ao fuzilamento de olhos por todas as madames da paróquia, já se via despedido, preso, cumprimentado pelo cavalo-marinho, sabia lá, contava que só os comandos o ajudariam, mas não queria denunciá-los. Foi um instante, mas o olhar de súplica foi tão dramático e intenso que não deixou nenhum de nós indiferente.
Foi o capitão Barbosa Henriques o primeiro comando a reagir, saltando em direcção ao jovem, clamando na sua voz tonitruante: