Uíge / Carmona
Uíge era, quando por lá fomos obrigados a sobreviver um ano, o nome de toda uma vasta província, a cuja capital chamávamos Carmona, hoje também ela Uíge. Que dizer de um e outro Uíge?
A província impressionava pela pujança e vigor da natureza, que os homens se habituaram a respeitar e explorar. Café e madeiras enchiam os bolsos dos colonos, uma agricultura rudimentar mas exuberante os estômagos dos nativos.
O clima, autoritário e firme. seguia e impunha uma rigorosa disciplina. Trovoadas eram um impressionante espectáculo pirotécnico, a chuva era mais pontual que o mais clássico dos ingleses, e inundava a eito, o vento varria sem remissão o que não se abrigasse e firmasse. |
Tudo segundo as expectativas, tudo durante o tempo previsto, tudo fugaz, com densas nuvens brancas elevando-se do solo fervente logo após a chuva, para reconduzir a água ao seu lugar nas alturas, e preparar novo ciclo, no dia e hora marcados.
A natureza era rainha, a primeira e maior autoridade na elaboração de todos os planos logísticos e operacionais.
A natureza era rainha, a primeira e maior autoridade na elaboração de todos os planos logísticos e operacionais.
A cidade era uma mancha dual em gestação, com uma zona afecta aos brancos e assimilados, onde a pequenez provinciana, ia dando lugar a uma urbe bem desenhada, de construção cuidada e bem disseminada, e uma zona nativa onde se construía à africana, ou seja, conforme o possível.
Não fomos visita assídua de Carmona, e lembro-me que, da primeira vez que lá entrámos, o motorista, com a carta tirada na tropa e a prática dada pelo mato, abordou a rotunda da entrada pelo lado mais directo, ou seja, pela esquerda. O pouco trânsito da cidade facilitou, mas o volante mudou imediatamente de mãos até o motorista fazer formação acelerada nas rotundas e semáforos da Vamba. |
Apesar de desinteressante, ir à cidade era uma festa, pela possibilidade de ir "comer ao civil". No Quitexe havia um restaurante onde se podia comer "bife, churrasco ou bacalhau", mas só um. Na cidade eram vários os sítios oferecendo "bife, churrasco ou bacalhau", o que fazia toda a diferença.
Uíge, enquanto capital da província cresceu muito, mas empobreceu. O centro da cidade, herança do período colonial, concentra a maior parte dos negócios e serviços públicos, enquanto em volta crescem bairros de deficiente ou nulo planeamento.
A recuperação das mazelas de duas guerras sucessivas é lenta, e a população vive com um rendimento médio dos mais baixos do mundo. A antiga cidade colonial não deve ter mudado muito de aspecto, mas, a verdade é que, provavelmente, nenhum de nós quarda dela memória bastante para identificar mudanças onde elas tenham ocorrido. |
Quitexe
Alguns anos antes de sequer sonharmos um dia ir lá parar, já Quitexe era um nome conhecido, verdadeiro ícone de guerra.
Em 1961, nos incidentes que despoletaram a guerra colonial, foi para o Quitexe que convergiram os colonos que fugiam em pânico das fazendas próximas, e foi do Quitexe que partiu a resposta à onda de violência instalada.
Desses tempos não falta na internet informação, com contributos civis e militares em paginas de indiscutível interesse, tais como Quitexe-história, Terras do Quitexe ou Recordações do Quitexe, mas, sobretudo de Quitexe-literatura, pela extensa bibliografia que sugere sobre a localidade.
Em 1961, nos incidentes que despoletaram a guerra colonial, foi para o Quitexe que convergiram os colonos que fugiam em pânico das fazendas próximas, e foi do Quitexe que partiu a resposta à onda de violência instalada.
Desses tempos não falta na internet informação, com contributos civis e militares em paginas de indiscutível interesse, tais como Quitexe-história, Terras do Quitexe ou Recordações do Quitexe, mas, sobretudo de Quitexe-literatura, pela extensa bibliografia que sugere sobre a localidade.
Quitexe foi, durante um ano, a sede do nosso batalhão, e destino frequente das regulares viagens de reabastecimento. Apesar de tudo, e talvez por causa da relativa frieza entre os oficiais, a ligação à terra foi sempre superficial, não restando, entre nós, registo de nada digno de menção, a não ser uma (única) foto do único jogo de futebol entre uma equipa da CCS e outra de Santa Isabel.
O campo, aqui e ali com um relvado até meio metro de altura, tinha a particularidade de apresentar no centro um pântano onde ninguém passava sem escorregar, pelo que, quando a bola lá caía, todos esperavam em redor que um corajoso lá entrasse devagarinho para a tirar e dar continuidade ao jogo, |
O Quitexe é hoje mais uma das muitas terras de Angola a sarar as feridas da guerra civil, e onde a recuperação, apesar de todos os ódios e complexos, não consegue apagar os sinais dos tempos portugueses.
Quimufuque
Os incidentes de 1961 tiveram uma tal expressão e consequências, que a ditadura não conseguiu abafá-los, antes os ampliou e distorceu, mobilizando à revolta. É hoje pacífico entre quem procurou o rigor na reescrita desses tempos de violência, que o derramamento de sangue se ficou a dever mais à resposta dos colonos e forças de segurança, melhor equipados e motivados pelo mais feroz dos sentimentos, o medo, do que propriamente à acção dos guerrilheiros.
Outros factos, no entanto, foram cuidadosamente escondidos, e só localmente deles foi possível tomar conhecimento.
A insurreição armada era designada pela população nativa sob controle como "confusão", e, em Santa Isabel, fomos confrontados com duas "confusões" - a de 61 e a de 69.
Ao que parece, em 1969 houve nova tentativa de forte sublevação, mas o dispositivo militar no terreno controlou-a com maior ou menor dificuldade.
A alguns quilómetros de Santa isabel havia uma sanzala chamada Quimufuque que, eventualmente, terá apoiado as novas movimentações.
O comandante da companhia de Santa Isabel não teve contemplações, cercou a povoação e arrasou-a.
Outros factos, no entanto, foram cuidadosamente escondidos, e só localmente deles foi possível tomar conhecimento.
A insurreição armada era designada pela população nativa sob controle como "confusão", e, em Santa Isabel, fomos confrontados com duas "confusões" - a de 61 e a de 69.
Ao que parece, em 1969 houve nova tentativa de forte sublevação, mas o dispositivo militar no terreno controlou-a com maior ou menor dificuldade.
A alguns quilómetros de Santa isabel havia uma sanzala chamada Quimufuque que, eventualmente, terá apoiado as novas movimentações.
O comandante da companhia de Santa Isabel não teve contemplações, cercou a povoação e arrasou-a.
Quando chegámos à fazenda, três anos depois, estava instalada a lenda do capitão "Terrível" que mandara colocar duas metralhadores em dois cantos da povoação e dera ordens para metralhar indistintamente. Quem não fugiu morreu ou foi capturado, e a lenda não se suaviza relativamente aos capturados, havendo relatos de prisioneiros serrados na serração da fazenda, em busca de confissões.
No âmbito da acção psicológica, traçámos como objectivo ajudar a população a regressar e reconstruir o aldeamento. Foi um projecto bem sucedido que nos terá valido o reconhecimento dps locais, havendo quem garanta que nos evitou alguns dissabores. |
Um dia, depois de passar a nossa coluna de reabatecimento, a poucos metros do Quimufuque, estalou uma emboscada para um grupo de Aldeia Viçosa, e diziam os soldados do recrutamento local, com fácil ligação à população, que não teria sido accionada mais cedo por sermos nós. Vale o que vale, não teve consequências, mas a verdade é que, depois de alguns regressos e apresentações de pessoas vindas da mata, quando saímos, já passava da centena de habitantes.
Hoje o Qimufuque lá continua, tendo sido notícia apenas por carecer de uma escola, e por, desde 2014, estar a ser objecto de combate à schistossomíase e helmintíase.
Hoje o Qimufuque lá continua, tendo sido notícia apenas por carecer de uma escola, e por, desde 2014, estar a ser objecto de combate à schistossomíase e helmintíase.
Negage
Quantos de nós foram ao Negage? Felimente poucos, e poucas vezes.
O Negage era a maior base aérea do Uíge, usada fundamentalmente para ligações prioritárias e evacuações.
Fui lá uma vez, quando parti a mão e tive que ir ao hospital radiografá-la, e depois quando apanhei uma boleia especial que conto noutro lado, no regresso dessa evacuação. Comigo foram três furriéis, Martins, Mota e Quinteira, a todos aproveitámos para ir almoçar ao "bife, churrasco ou bacalhau" local. Radiografia feita, ala de volta para o mato, sem tempo nem disposição para uma vista de olhos a uma povoação que, agora, fotos de outros, "dizem" que talvez tivesse alguns atractivos. E Hoje? Está lá, continua a ter aviões, e a dizer-nos o mesmo que há quarenta anos |
Aldeia Viçosa
Aldeia Viçosa era o ponto de contacto com o asfalto e o MVL. O asfalto representava pouco mais que a possibilidade de ir ao Quitexe, dado que para sul o trânsito estava condicionado e para norte Carmona era mais distante. Quanto ao MVL era uma rotina bi-semanal, sem atractivos nem novidades.
A população civil era reduzida, com pouco actividade, o que não convidava a qualquer incursão fora do circuito militar, e como a actividade conjunta entre ambas as companhias só viria a acontecer no Zaire, os contactos foram pouco entusiásticos.
Se é verdade que Aldeia Viçosa não nos deixou grandes saudades, também o é que não as terá deixado a quem lá viveu um ano, pois, vasculhando a muita informação sobre encontros de militares, constatamos que a única companhia do batalhão que mantém contactos regulares é a nossa.
A população civil era reduzida, com pouco actividade, o que não convidava a qualquer incursão fora do circuito militar, e como a actividade conjunta entre ambas as companhias só viria a acontecer no Zaire, os contactos foram pouco entusiásticos.
Se é verdade que Aldeia Viçosa não nos deixou grandes saudades, também o é que não as terá deixado a quem lá viveu um ano, pois, vasculhando a muita informação sobre encontros de militares, constatamos que a única companhia do batalhão que mantém contactos regulares é a nossa.
Aldeia Viçosa é hoje referida como "cidade", sede de município, mas a sua actividade parece ser mínima face à carência de referências
Zalala
Zalala era, para nós, uma espécie de prémio de consolação - um local tão ermo e inseguro quanto o nosso, mas sem os recursos providenciados pela fazenda Santa Isabel.
Essa foi, aliás, a justificação do comando para lhes conceder o privilégio de um segundo ano de comissão na praia de Ambrizete, enquanto nós penávamos nos confins de Quiximba.
Algum de nós terá ido a Zalala? Não recordo, apenas guardo a triste recordação de lhes ter calhado a pior das favas, sendo a única companhia do batalhão a registar baixas em combate.
Essa foi, aliás, a justificação do comando para lhes conceder o privilégio de um segundo ano de comissão na praia de Ambrizete, enquanto nós penávamos nos confins de Quiximba.
Algum de nós terá ido a Zalala? Não recordo, apenas guardo a triste recordação de lhes ter calhado a pior das favas, sendo a única companhia do batalhão a registar baixas em combate.
Fomos rendidos em 1973 pelo Batalhão de Cavalaria 8423, que nos deixou esta excelente foto da época. Obrigado! Mais fotos de Zalala são publicadas por Carlos Carvalho da Cacç 3534, a única pessoa fora da nossa companhia que parece ainda "mexer" no Batalhão 3879
Os caminhos para a guerra do Uíge
Sai-se de Luanda com o coração apertado, e o aperto acentua-se à medida que os caminhos da guerra vão exibindo as suas misérias. Caxito é o fim da segurança, Úcua a primeira paragem na zona de guerra, um punhado de pobres habitações à beira da estrada, programa que se repete umas dezenas de quilómetros depois, no Píri e mais à frente em Vista Alegre, aqui com a novidade de uma ponte de grande porte exigir uma guarnição exclusiva.
Caminhos que afastam e adiam a civilização, caminhos que dão imediatamente início à contagem dos meses, dias, horas e minutos que faltam para " o meu regresso".
Caminhos que se fazem em sentido inverso sem que o aperto se suspenda, pelo contrário, por que " vamos lá ver se depois de aguentar todos estes meses não é agora que elas acontecem", até ao suspiro de alívio quando as palmeiras alinhadas do Caxito anunciam o regresso à zona de paz.
Que memórias nos podem deixar estes lugares senão o conforto de tudo ter corrido bem até à última passagem?
Caminhos que afastam e adiam a civilização, caminhos que dão imediatamente início à contagem dos meses, dias, horas e minutos que faltam para " o meu regresso".
Caminhos que se fazem em sentido inverso sem que o aperto se suspenda, pelo contrário, por que " vamos lá ver se depois de aguentar todos estes meses não é agora que elas acontecem", até ao suspiro de alívio quando as palmeiras alinhadas do Caxito anunciam o regresso à zona de paz.
Que memórias nos podem deixar estes lugares senão o conforto de tudo ter corrido bem até à última passagem?
Caxito Píri (fotos recolhidas na internet)