Cobras
Não gosto de cobras! Não que tenha grande pavor, mas... não simpatizo. Entre nós há apenas dois tipos de cobras:
- A cobra rateira, grande e inofensiva (excepto para os ratos) é a mais abundante. Como ainda gosto menos de ratos, nunca concordei em matar as poucas que vi perto de casa.
- A víbora é uma cobra mais pequena e perigosa, cujo veneno pode matar (e já tive que matar uma dentro da garagem).
Em África o panorama é outro.
Não foram muitas nem graves as experiências com cobras, mas algumas ficaram na memória:
Desde logo o tremendo medo dos indígenas da cobra do café - uma pequenina cobra preta que se deixava cair dos cafezeiros e cuja picada era mortal. Para se protegerem os trabalhadores usavam um varapau com que varejavam à distância os arbustos do café antes de fazerem o trabalho. Felizmente não houve qualquer acidente durante a nossa permanência na zona do café.
Também nessa zona se falava na mais temível de todas - a cobra da palmeira, igualmente pequenina, tinha uma picada tão terrível, que, segundo as histórias que se contavam, os indígenas que as avistavam preferiam deixar-se cair imediatamente das palmeiras, mesmo antes da cobra desencadear qualquer ataque. Também não tivemos qualquer experiência com elas.
Mas tivemos com outras.
Uma noite em Zau Évoa, o padeiro (do Quiende), viu à entrada do quarto, duas pequenas cobras abraçadas. Esse sim, tinha pânico das cobras, e, mesmo depois das termos espantado, só a muito custo, bem bebido e bem escoltado, se atreveu a ir para a cama. Ainda em Zau Évoa, quando decidimos bombear água dum buraco junto ao quartel para encher a piscina, descobrimos no fundo uma enorme cobra de água, que resistiu a todas as tentativas de a liquidar. Durante as semanas em que usámos a piscina, instalou-se uma rotina: os homens chegavam e as rãs saltavam fora; saíam os homens voltavam as rãs. Alguém receou que a cobra tomasse conta da piscina, mas nunca se apresentou.
Lembro-me bem da minha segunda ou terceira noite no mato: quando se aproximou a hora de parar e montar o acampamento, escolhi cuidadosamente uma zona limpa e sem quissondo. Tudo bem, e quando me refastelo para dormir, noto, por cima, uma enorme jibóia enrolada na árvore, de cabeça pendurada. Já era tarde para levantar o acampamento e mudar de sítio, e dar um tiro à noitinha num acampamento, a mais proibida das coisas, em nome da segurança. A solução foi avisar o pessoal, e dormir com um olho aberto e outro fechado. Nada aconteceu, e no dia seguinte lá levantámos o acampamento sem a cobra dar sinal de vida.
Sinal de vida não podia dar outra jibóia, que encontrámos esquartejada junto ao rio M'Bridge. O Teixeira, o guia, parou, e explicou: a cobra tinha comido um veado, começando por trás, e acabou apenas com as armações do animal de fora da boca, à espera que a digestão lhe permitisse expulsá-las. Foi nessa altura que um grupo de guerrilheiros a encontrou, e à catanada a cortou em fatias. Não me lembro se faltava muita cobra, mas seguramente tinha dado um grande petisco.
- A cobra rateira, grande e inofensiva (excepto para os ratos) é a mais abundante. Como ainda gosto menos de ratos, nunca concordei em matar as poucas que vi perto de casa.
- A víbora é uma cobra mais pequena e perigosa, cujo veneno pode matar (e já tive que matar uma dentro da garagem).
Em África o panorama é outro.
Não foram muitas nem graves as experiências com cobras, mas algumas ficaram na memória:
Desde logo o tremendo medo dos indígenas da cobra do café - uma pequenina cobra preta que se deixava cair dos cafezeiros e cuja picada era mortal. Para se protegerem os trabalhadores usavam um varapau com que varejavam à distância os arbustos do café antes de fazerem o trabalho. Felizmente não houve qualquer acidente durante a nossa permanência na zona do café.
Também nessa zona se falava na mais temível de todas - a cobra da palmeira, igualmente pequenina, tinha uma picada tão terrível, que, segundo as histórias que se contavam, os indígenas que as avistavam preferiam deixar-se cair imediatamente das palmeiras, mesmo antes da cobra desencadear qualquer ataque. Também não tivemos qualquer experiência com elas.
Mas tivemos com outras.
Uma noite em Zau Évoa, o padeiro (do Quiende), viu à entrada do quarto, duas pequenas cobras abraçadas. Esse sim, tinha pânico das cobras, e, mesmo depois das termos espantado, só a muito custo, bem bebido e bem escoltado, se atreveu a ir para a cama. Ainda em Zau Évoa, quando decidimos bombear água dum buraco junto ao quartel para encher a piscina, descobrimos no fundo uma enorme cobra de água, que resistiu a todas as tentativas de a liquidar. Durante as semanas em que usámos a piscina, instalou-se uma rotina: os homens chegavam e as rãs saltavam fora; saíam os homens voltavam as rãs. Alguém receou que a cobra tomasse conta da piscina, mas nunca se apresentou.
Lembro-me bem da minha segunda ou terceira noite no mato: quando se aproximou a hora de parar e montar o acampamento, escolhi cuidadosamente uma zona limpa e sem quissondo. Tudo bem, e quando me refastelo para dormir, noto, por cima, uma enorme jibóia enrolada na árvore, de cabeça pendurada. Já era tarde para levantar o acampamento e mudar de sítio, e dar um tiro à noitinha num acampamento, a mais proibida das coisas, em nome da segurança. A solução foi avisar o pessoal, e dormir com um olho aberto e outro fechado. Nada aconteceu, e no dia seguinte lá levantámos o acampamento sem a cobra dar sinal de vida.
Sinal de vida não podia dar outra jibóia, que encontrámos esquartejada junto ao rio M'Bridge. O Teixeira, o guia, parou, e explicou: a cobra tinha comido um veado, começando por trás, e acabou apenas com as armações do animal de fora da boca, à espera que a digestão lhe permitisse expulsá-las. Foi nessa altura que um grupo de guerrilheiros a encontrou, e à catanada a cortou em fatias. Não me lembro se faltava muita cobra, mas seguramente tinha dado um grande petisco.
Foi também nessa zona que num fim de tarde tive que chamar a atenção ao Gomes e ao Silva, para o enorme banzé que estavam a fazer à volta da minha tenda, onde eu tentava aproveitar os últimos raios de luz para ler qualquer coisa. O Gomes alvoroçado, justificou-se:
- Era uma cobra, meu alferes,a tentar entrar para a sua tenda.
Mas a melhor cena passou-se com o furriel Abrantes:
Eu seguia na Berliet, a caminho de Zau Évoa, quando, cerca de dois quilómetros depois de Quiximba,a viatura saltou num tronco atravessado na estrada. Achei estranho, e quando olhei para trás vi "o tronco" a contorcer-se - era uma enorme jibóia, tão comprida que atravessava completamente a estrada, com a cabeça e o rabo enfiados na mata. O atropelamento pelo rebenta-minas não a matou, mas... incomodou.
Viajando na segunda viatura o Abrantes viu tudo, mandou parar, saltou para o chão, e desatou a fazer fogo sobre a cobra que se torcia a seus pés, sujeito a ser atingido pelas violentas contorções. Durou uns segundos o tiroteio, após o que a cobra fugiu para o mato.
- Era uma cobra, meu alferes,a tentar entrar para a sua tenda.
Mas a melhor cena passou-se com o furriel Abrantes:
Eu seguia na Berliet, a caminho de Zau Évoa, quando, cerca de dois quilómetros depois de Quiximba,a viatura saltou num tronco atravessado na estrada. Achei estranho, e quando olhei para trás vi "o tronco" a contorcer-se - era uma enorme jibóia, tão comprida que atravessava completamente a estrada, com a cabeça e o rabo enfiados na mata. O atropelamento pelo rebenta-minas não a matou, mas... incomodou.
Viajando na segunda viatura o Abrantes viu tudo, mandou parar, saltou para o chão, e desatou a fazer fogo sobre a cobra que se torcia a seus pés, sujeito a ser atingido pelas violentas contorções. Durou uns segundos o tiroteio, após o que a cobra fugiu para o mato.
Dois dias depois, para alegria dos estômagos, os nativos encontraram no mato uma enorme jibóia morta, que presumimos ser a mesma.
Depois disto tudo acham que eu me poderia impressionar com uma cena a que assisti no Quiende, mesmo em frente ao quartel?
Os indígenas encontraram uma jibóia estendida a dormir na valeta frente à porta-de-armas, do lado da sanzala. Um enorme alvoroço e eu, que me preparava para jantar com o capitão, fui ver. Três ou quatro homens malhavam na cobra à paulada, e tantas deram que a cobra vomitou cinco galinhas, e fugiu. Maldita digestão!
Por falar em digestão - não posso fechar esta já longa história sem contar o meu jantar com o tal capitão, que não conhecia.
Tratava-se de uma daquelas pessoas que tentaram usar a guerra para fazer um pé-de-meia, poupando nos gastos com o pessoal. A única carne que comprava era... barriga de porco, gordura com gordura.
Quando estávamos em Zau Évoa éramos abastecidos por eles, e só o recurso à muita caça evitava que o nosso pessoal, habituado a ser alimentado normalmente, se amotinasse. Mas... eu tinha que fazer qualquer coisa!
Quando, um dia, tendo que passar no Quiende para ir a São Salvador do Zaire, recebi o convite do capitão para jantar com ele, percebi que era o dia.
Lá nos sentámos à mesa, só os dois, e quando o pessoal trouxe o jantar (barriga de porco, claro, de que, por azar, ele até gostava muito, juntando o útil ao agradável), eu meti a mão ao bolso, tirei uma lata de sardinhas de ração de combate, e despejei-as no prato.
Depois disto tudo acham que eu me poderia impressionar com uma cena a que assisti no Quiende, mesmo em frente ao quartel?
Os indígenas encontraram uma jibóia estendida a dormir na valeta frente à porta-de-armas, do lado da sanzala. Um enorme alvoroço e eu, que me preparava para jantar com o capitão, fui ver. Três ou quatro homens malhavam na cobra à paulada, e tantas deram que a cobra vomitou cinco galinhas, e fugiu. Maldita digestão!
Por falar em digestão - não posso fechar esta já longa história sem contar o meu jantar com o tal capitão, que não conhecia.
Tratava-se de uma daquelas pessoas que tentaram usar a guerra para fazer um pé-de-meia, poupando nos gastos com o pessoal. A única carne que comprava era... barriga de porco, gordura com gordura.
Quando estávamos em Zau Évoa éramos abastecidos por eles, e só o recurso à muita caça evitava que o nosso pessoal, habituado a ser alimentado normalmente, se amotinasse. Mas... eu tinha que fazer qualquer coisa!
Quando, um dia, tendo que passar no Quiende para ir a São Salvador do Zaire, recebi o convite do capitão para jantar com ele, percebi que era o dia.
Lá nos sentámos à mesa, só os dois, e quando o pessoal trouxe o jantar (barriga de porco, claro, de que, por azar, ele até gostava muito, juntando o útil ao agradável), eu meti a mão ao bolso, tirei uma lata de sardinhas de ração de combate, e despejei-as no prato.
O homem ficou branco, não se conteve, e disparou:
- Oh, senhor alferes, acho isso de uma enorme indelicadeza! - Peço desculpa, meu capitão, de facto é, mas é a forma mais delicada que encontro para lhe transmitir a insatisfação dos meus homens pela forma como os alimenta. Tudo serenou, nunca mais voltei a encontrá-lo, mas, a partir daí, em Zau Évoa, a barriga de porco passou a alternar com frango. Há quem diga que fui mau como as cobras - talvez... pelo menos venenoso fui, mas... abençoado veneno. Contado por Avelino Lopes |