Caçadas
Uma das recordações mais vivas que quase todos trazem de África é a do historial das caçadas. Com o tempo, a imaginação vai temperando e colorindo histórias reais, tornando os relatos tão fiáveis quanto as história dos pescadores, cada um deles pescando um peixe maior que todos os dos amigos.
A verdade iniludível é que, de facto, em África se caçou muito, animais de porte variável, e com histórias... algumas interessantes.
A nossa maior caçada foi seguramente em Zau Évoa. Uma noite saímos à procura da tão necessária carne, e tivemos aquela sensação, muito presente em diversos relatos e por nós até aí nunca vivida, de estarmos face a uma manada monumental. O farolim percorria a orla da lagoa, e só se viam olhos a brilhar - centenas de olhos, talvez. Como uma mola, todo o pessoal se levantou no Unimog e eu ainda gritei "Ninguém atira" mas já não fui ouvido - armas em posição de rajada, o tiroteio foi cego e medonho, na direcção da manada que se sabia estar ali, no escuro.
Um imenso tropel, em todas as direcções, com animais enormes a passar tangentes ao Unimog, e eu a pensar que se algum nele embatesse e o virasse, podería haver alguém espezinhado, mas felizmente nada aconteceu, e em breves segundos instalou-se a calma e o silêncio.
Enquanto o pessoal mudava carregadores, preparámos a batida, com os faróis dos dois Unimogs a iluminar toda a área. O resultado foi o que se receava - um massacre. Duas pacaças e quatro burros do mato tinham sido abatidos e muitos outros animais iriam provavelmente morrer dos ferimentos que levavam.
Preguei a indispensável seca ao pessoal, pelo descontrolo revelado, mas todos se desculparam com o impulso, e com o receio de que os animais fugissem antes que alguém disparasse.
Ficámos então entregues à tarefa de transportar as quase duas toneladas de carne, para o que carecíamos de meios. Um rádio para o quartel, e vieram mais dois Unmogs, com guinchos, e entre as quatro viaturas lá transportámos a caça, gastando o resto da noite a desmanchar as carcaças.
Novo problema surgia - não havia frigoríficos para guardar tanta carne, pelo que enviámos mensagens a todas as unidades da região para que fossem lá buscar o que quizessem.
Esta foi uma história de abundância, mas a regra era o contrário - muitas saídas se saldavam por fracassos, regressando de mão a abanar.
Lembro-me de uma divertida situação em que saímos de jeep e nada vimos. Já de regresso, e na zona do café, levantaram voo da picada dois pombos bravos (ninguém ligava, claro, não tinha interesse como caça). Irritado pelo falhanço, virei-lhes a espingarda, e da anca, tipo tiro à cowboy, disparei. Até eu me assustei quando vi cair um dos pombos. Poderia lá ter ficado a caçar pombos, que até hoje não teria conseguido repetir a façanha.
Lembro-me também do primeiro animal que cacei. Levava uma caçadeira do gerente de Santa Isabel, com seis cartuchos de chumbo grosso, quando o farolineiro avisou:
-Ali!
Olhei e não vi nada, mas o resto do pesoal confirmava - "Está lá, está!.
O farolim apontava para a orla do mato, a uns cinquenta metros da viatura, e eu nada via, mas, não querendo dar parte de fraco, apontei para o centro do foco luminoso e disparei. Alguns homens saltaram para ir ver se tinha acertado ou não, quando o farolineiro gritou:
- Olha, está lá outra vez!
E aí vi - dois olhos a reflectir muito tenuamente a luz do farolim, imóveis pelo encadeamento. Os homens deitaram-se no capim à minha frente, e de pé na viatura voltei a disparar. Os olhos desapareceram, e reapareceram instantes depois. E assim acabei por gastar os seis cartuxos - olhos - tiro - olhos desaparecem e voltam a aparecer.
Os homens foram então ao local, e lá estava uma cabra do mato viva, mas imóvel - no primeiro tiro partira-lhe a coluna, impedindo-a de fugir. Todos os outro tiros falharam - assustavam o animal, que se virava para trás tentando a fuga (desapareciam os olhos) e voltava a olhar para a luz quando desistia de fugir.
Mas mais impressionante foi a caçada de uma cabrita de mato, que levou um tiro idêntico - Atingida quando pastava à borda da picada, tentou fugir para dentro do cafezal, arrastando os quartos trazeiros. Persegui-a facilmente, e quando percebeu que não podia escapar virou-se contra mim e tentou marrar-me nas pernas com os seus cornitos que ainda mal despontavam.
O tiro de misericórdia foi dado mesmo junto aos pés, mas impressionou-me vivamente o instinto revelado pelo animal.
- Avião!
Avião em Zau Évoa à quarta-feira e domingo representava reabastecimento, nos outros dias, oficial superior (sub-comandante de batalhão ou acima).
O problema é que em Zau Évoa nós andávamos... à balda. Calções a chinelos, tronco nu, barba de semanas, cabelo de meses, nada de apresentável a um oficial superior.
Dei instruções a um furriel para que organizasse a segurança à pista (tinha que ir uma viatura com soldados ocupar posições no extremo da pista oposto ao quartel, antes do avião aterrar) e voei para o quarto, para me arranjar. Peguei na Gilllete, e, a seco, rapei a barba de três semanas, enfiei o camuflado, e cheguei à messe ao mesmo tempo que o jeep trazendo os dois visitantes.
Quando vou para os cumprimentar deparo com dois rapazes, de olhos esbugalhados fixados em mim, como se estivessem a ver o ET ou pior.
- O meu alferes já viu a sua figura? - questionou um deles quando lhes perguntei qual a razão do espanto.
Corri para um espelho, e bem... tinha mais sangue que cara. O barbear a seco fizera estragos muito consideráveis. E sem necessidade - afinal eram apenas dois cabos especialistas da força aérea que iam a passar por ali, tinham ouvido a nossa mensagem a oferecer carne, no princípio desta história, e decidiram parar para levar alguma.
Contado por Avelino Lopes
A verdade iniludível é que, de facto, em África se caçou muito, animais de porte variável, e com histórias... algumas interessantes.
A nossa maior caçada foi seguramente em Zau Évoa. Uma noite saímos à procura da tão necessária carne, e tivemos aquela sensação, muito presente em diversos relatos e por nós até aí nunca vivida, de estarmos face a uma manada monumental. O farolim percorria a orla da lagoa, e só se viam olhos a brilhar - centenas de olhos, talvez. Como uma mola, todo o pessoal se levantou no Unimog e eu ainda gritei "Ninguém atira" mas já não fui ouvido - armas em posição de rajada, o tiroteio foi cego e medonho, na direcção da manada que se sabia estar ali, no escuro.
Um imenso tropel, em todas as direcções, com animais enormes a passar tangentes ao Unimog, e eu a pensar que se algum nele embatesse e o virasse, podería haver alguém espezinhado, mas felizmente nada aconteceu, e em breves segundos instalou-se a calma e o silêncio.
Enquanto o pessoal mudava carregadores, preparámos a batida, com os faróis dos dois Unimogs a iluminar toda a área. O resultado foi o que se receava - um massacre. Duas pacaças e quatro burros do mato tinham sido abatidos e muitos outros animais iriam provavelmente morrer dos ferimentos que levavam.
Preguei a indispensável seca ao pessoal, pelo descontrolo revelado, mas todos se desculparam com o impulso, e com o receio de que os animais fugissem antes que alguém disparasse.
Ficámos então entregues à tarefa de transportar as quase duas toneladas de carne, para o que carecíamos de meios. Um rádio para o quartel, e vieram mais dois Unmogs, com guinchos, e entre as quatro viaturas lá transportámos a caça, gastando o resto da noite a desmanchar as carcaças.
Novo problema surgia - não havia frigoríficos para guardar tanta carne, pelo que enviámos mensagens a todas as unidades da região para que fossem lá buscar o que quizessem.
Esta foi uma história de abundância, mas a regra era o contrário - muitas saídas se saldavam por fracassos, regressando de mão a abanar.
Lembro-me de uma divertida situação em que saímos de jeep e nada vimos. Já de regresso, e na zona do café, levantaram voo da picada dois pombos bravos (ninguém ligava, claro, não tinha interesse como caça). Irritado pelo falhanço, virei-lhes a espingarda, e da anca, tipo tiro à cowboy, disparei. Até eu me assustei quando vi cair um dos pombos. Poderia lá ter ficado a caçar pombos, que até hoje não teria conseguido repetir a façanha.
Lembro-me também do primeiro animal que cacei. Levava uma caçadeira do gerente de Santa Isabel, com seis cartuchos de chumbo grosso, quando o farolineiro avisou:
-Ali!
Olhei e não vi nada, mas o resto do pesoal confirmava - "Está lá, está!.
O farolim apontava para a orla do mato, a uns cinquenta metros da viatura, e eu nada via, mas, não querendo dar parte de fraco, apontei para o centro do foco luminoso e disparei. Alguns homens saltaram para ir ver se tinha acertado ou não, quando o farolineiro gritou:
- Olha, está lá outra vez!
E aí vi - dois olhos a reflectir muito tenuamente a luz do farolim, imóveis pelo encadeamento. Os homens deitaram-se no capim à minha frente, e de pé na viatura voltei a disparar. Os olhos desapareceram, e reapareceram instantes depois. E assim acabei por gastar os seis cartuxos - olhos - tiro - olhos desaparecem e voltam a aparecer.
Os homens foram então ao local, e lá estava uma cabra do mato viva, mas imóvel - no primeiro tiro partira-lhe a coluna, impedindo-a de fugir. Todos os outro tiros falharam - assustavam o animal, que se virava para trás tentando a fuga (desapareciam os olhos) e voltava a olhar para a luz quando desistia de fugir.
Mas mais impressionante foi a caçada de uma cabrita de mato, que levou um tiro idêntico - Atingida quando pastava à borda da picada, tentou fugir para dentro do cafezal, arrastando os quartos trazeiros. Persegui-a facilmente, e quando percebeu que não podia escapar virou-se contra mim e tentou marrar-me nas pernas com os seus cornitos que ainda mal despontavam.
O tiro de misericórdia foi dado mesmo junto aos pés, mas impressionou-me vivamente o instinto revelado pelo animal.
- Avião!
Avião em Zau Évoa à quarta-feira e domingo representava reabastecimento, nos outros dias, oficial superior (sub-comandante de batalhão ou acima).
O problema é que em Zau Évoa nós andávamos... à balda. Calções a chinelos, tronco nu, barba de semanas, cabelo de meses, nada de apresentável a um oficial superior.
Dei instruções a um furriel para que organizasse a segurança à pista (tinha que ir uma viatura com soldados ocupar posições no extremo da pista oposto ao quartel, antes do avião aterrar) e voei para o quarto, para me arranjar. Peguei na Gilllete, e, a seco, rapei a barba de três semanas, enfiei o camuflado, e cheguei à messe ao mesmo tempo que o jeep trazendo os dois visitantes.
Quando vou para os cumprimentar deparo com dois rapazes, de olhos esbugalhados fixados em mim, como se estivessem a ver o ET ou pior.
- O meu alferes já viu a sua figura? - questionou um deles quando lhes perguntei qual a razão do espanto.
Corri para um espelho, e bem... tinha mais sangue que cara. O barbear a seco fizera estragos muito consideráveis. E sem necessidade - afinal eram apenas dois cabos especialistas da força aérea que iam a passar por ali, tinham ouvido a nossa mensagem a oferecer carne, no princípio desta história, e decidiram parar para levar alguma.
Contado por Avelino Lopes